Nem Franco, nem Walt*

O Ricardo Calil publicou ontem [infelizmente o post já não está no antigo blog dele] um post bacana sobre o que seria o filme mais triste do mundo, “O Campeão”, do Franco Zeffirelli, segundo uma pesquisa em psicologia bastante citada:

A história de como um filme medíocre se tornou um instrumento para cientistas começa em 1988. Robert Levenson, professor de psicologia da Universidade da Califórnia, e seu aluno James Gross começaram a pedir para colegas, críticos, cinéfilos e empregados de lojas de vídeo sugestões de trechos de filmes que pudessem despertar fortes reações emocionais, que seriam a base para suas pesquisas. (…)

Eles selecionaram 328 trechos de filmes, que foram mostrados a um grupo de 500 alunos. Em 1995, eles chegaram a uma seleção final com 16 cenas que conseguiam despertar uma única emoção. (…) em tristeza, o campeão foi, conforme dito acima, ‘O Campeão’ – que ganhou de longe da cena da morte da mãe de Bambi.

Desde que Levenson e Gross determinaram cientificamente que ‘O Campeão’ é o filme mais triste de todos os tempos, sua pesquisa já foi citada em mais de 300 artigos, e a cena final foi exibida em dezenas de experimentos. (…) [Grifos meus]

Não lembro qual foi o filme mais triste que assisti, mas é certo que não foi “O Campeão”. Deve ser porque o cinema do Franco Zeffirelli nunca me agradou, por mais que guarde com carinho a lembrança, eu criança ainda, de uma das minhas primeiras asas arrastadas: Olivia Hussey, escolhida pelo diretor para ser a Julieta mais bela que já houve. Não, não é exatamente por isso, há outras razões. Destaco minha dificuldade, misturada com uma espécie de resistência quase política, de categorizar experiências sensoriais, afetivas, relações com objetos, momentos, paisagens, pessoas, mesmo já tendo brincado disso mais de uma vez. Mas a sério, como assim haver “dez mais” de qualquer coisa? Nenhuma lista, nenhuma hierarquia que consiga isolar um único aspecto me é satisfatória por mais do que algumas semanas ou mesmo dias. Talvez porque há tempos ou mesmo desde sempre eu venha lidando com minha memória (ou com quem sou, vá lá) como se ela fosse uma espécie de condomínio, um desses edifícios residenciais e comerciais de vinte e oito apartamentos por andar com velhos e novos moradores andando pelos corredores e misturando-se aos contínuos, despachantes, contadores, advogados e protéticos nove às seis e o (en)cargo de síndico passando de mão em mão, despertando paixões, ódios, fazendo e refazendo alianças, e os ruídos dos vizinhos sendo objeto de irritação, dúvida, incredulidade, saudade… Nada é fixo quanto parece. O que é importante, seja referência positiva ou negativa, o que é engraçado, alegórico, o que não passa de figuração, pano de fundo onde algumas memórias se destacam, de uma hora para outra pode mudar de lugar ou mesmo desaparecer. Exemplo que me ocorre: o próprio ato de blogar tendo reminiscências como mote, especialmente aquelas memórias mais distantes. É que ao recordá-las, colocá-las em palavras-frases-parágrafos e deixá-las penduradas neste espaço, a própria reedição cria uma nova relação com elas, um novo fluxo de pessoas no condomínio: seguirão com o peso de antes? As pessoas que nelas aparecem continuarão sendo praticamente as mesmas e tão importantes ou desimportantes quanto eram? As dúvidas, o rancor, a palpitação, o sorriso fácil que desenhavam em meu rosto seguirão parecidos? Ou desbotaram? Ou mudaram completamente? E os novos elementos, inclusive a versão trazida por algum terceiro que também estava presente naquele passado e que não achou nada daquilo e ainda por cima te prova por a mais bê que o que você pensava ter tido a intensidade de uma explosão nuclear não passou de um estalinho?

Mas o papo era sobre cinema, sobre filmes tristes, melhor voltar a eles. Lembro de uma profunda tristeza ao sair de Um dia muito especial, do Ettore Scola, conversando com o amigo com quem fui assisti-lo. Os dois caminhando em direção ao carro, os dois com vinte, vinte um ou vinte e dois anos, decerto entre extasiados, melancólicos e mais algum outro sentimento azulado — não sei ele se de todo, mas certa e inteiramente eu —, mais ainda pela distância que hoje se instalou entre a gente, e já não é bem do filme que falo. Lembro de outra, numa sala pequena, 1991, julho ou talvez já agosto, o filme era A dupla vida de Veronique, do Kieslowski, numa tarde que se fez noite de tão triste que estava pela morte do meu pai semanas antes. Uma terceira tristeza é certa: Paris, Texas, do Wim Wenders. Eu a vejo quase no filme inteiro, mas não consigo fugir do que Travis diz a Jane, “I knew these people. These two people. They were in love with each other”, e dá-lhe texto, e tome dor de amor, de posse, de pathos, de reparação, ele de costas para ela mesmo sabendo que não dava para ser visto. E nem ideia de com quem vi o filme, em que cinema, se estava solteiro, namorando, se aquelas cenas se misturaram a dores parecidas, próximas ou distantes, não sei de nada em torno do momento em que o assisti pela primeira vez e nem se o que guardei foram impressões primeiras que hoje só faço replicar. Ah, tem mais uma, num 1985 impossível de esquecer, sentado ao lado daquela que dias antes dissera acabou, não te quero mais. O primeiro reencontro como “amigos”, nem bem começou o filme ela encosta a cabeça entre meu ombro e meu peito e o máximo que guardo comigo é de não mexer meu braço esquerdo de jeito nenhum até subirem os créditos, por mais que o formigamento já tivesse virado uma dor quase insuportável. Do filme? Nem a mais remota ideia. Mas da tristeza por aquelas migalhas recebidas sim, muita. Foi uma das sessões de cinema mais dolorosas que guardo comigo, então que história é essa de não poder colocá-la na lista dos filmes mais tristes do mundo?

___________
* O Walt é de Walt Disney mesmo, por aludir ao Filme “Bambi” e a um post que cometi, “Veríssimo, a mãe do Bambi e eu“.

Esse post foi publicado em cinema, memórias. Bookmark o link permanente.

21 respostas para Nem Franco, nem Walt*

  1. silvia disse:

    sempre você e essa fina flor de sensibilidade. bjs

    Curtir

  2. Marcelo D. disse:

    Essa sua última lembrança, do cinema, é de doer até em quem lê, meu amigo.
    😦
    Eu lembro de ter ficado triste pra cacete assistindo, criança de tudo, O Campeão com meu pai no cinema. Deve ter me traumatizado de alguma forma. Mas o filme que mais me fez chorar até hoje foi A Lista de Schindler. O filme terminando e eu me debulhando e pensando: como meus ancestrais foram capazes disso?

    Curtir

  3. Márcia W. disse:

    Quase desidratei assistindo Maria’s Lovers. Mas fiquei achando que era “só” o filme trazendo à tona do meu momento emocional, e não digamos assim, o filme em si. Tempos depois, resolvi ver de novo o filme. Aí, já na primeira cena comecei a me debulhar. As pessoas que estavam comigo além de não terem entendido nada da minha reação, tinham o-d-e-a-d-o o filme. Corri para o orelhão mais próximo e telefonei para um amigo que tinha também se emocionado muito com o filme. E essa ficou como a melhor lembrança. Eu aos prantos, antes mesmo de dizer alô, falo: X, buá buá, você não sabe o que aconteceu, buá BUÁ BUÁ. Ele: o quê ????? Eu: acabei ser assistir os Amantes de Maria BUÁBUÁ. Ele: onde você está? Vou praí agora.

    Curtir

    • Ricardo C. disse:

      Eu lembro de ter gostado muito desse filme, Márcia, mas pelo que você conta o filme não me pegou tão em cheio como a você. De qualquer forma, a sua história parece coincidir com as minhas, onde o momento em que vimos o filme, as pessoas que nos acompanhavam, o entorno, o antes e o depois, nosso estado de espírito e a distância no tempo fazem grande diferença, inclusive para que sigamos sentindo o mesmo por um filme visto há tempos… 🙂

      P.S. Amigos como o teu são os amigos de verdade!

      Curtir

  4. Pingback: Ricardo C.

  5. Luiz disse:

    Meu caro Ricardo,

    Por opção, nunca assisti “O Campeão” quando do lançamento, e mesmo depois. Pelo menos não na totalidade (vi uns trechos na TV…). Mesmo numa época pré-internet, os “spoilers” já apareciam aqui e ali, e o tema me é particularmente indigesto. Especialmente para um chorão cinematográfico de marca maior como eu…

    Aliás, são temas, e não filmes específicos, que me catucam os sentimentos. Por exemplo, nunca esqueço das sequencias finais de Spartacus (o filme, não a série…). E por aí vai…

    E, sim, Olivia Hussey é imbatível na categoria “paixões pré-adolescentes”.

    Curtir

  6. Rafael disse:

    Eu, que não tenho essas lembranças intelectuais, e que não choro, chorei que me acabei com o final de “O Campeão”, na TV aos 14 anos. Foi o único filme que me fez chorar, na verdade. É o que o Calil fala: manipulação barata, mas e daí? Nada contra, e uma comédia boba e rasteira como “Quem Vai Ficar com Mary” me fez dobrar de gargalhar no cinema.

    Outros filmes comentados aqui me lembram sensações diferente. “Os Amantes de Maria”, mesmo belísismo, e que vi com uma amiga em vídeo, me fez comentar algumas vezes: “Corno! Corno manso!” Ou seja, ri em vez de chorar. “A Lista de Schindler” me fez quase chorar de raiva, ao ver como Spielberg se deixou estragar, no final, o que teria sido o melhor filme de sua vida.

    E uma coisa curiosa: você menciona Walt (Disney? Bambi?) no título, e não no texto. 🙂

    Curtir

    • Ricardo C. disse:

      Pra começar, deixe de viadagem, Rafael, porque lembrança intelectual é o que não te falta, por mais que você as encubra com um sarcasmo agreste feito a porra 😛 Quanto à manipulação barata, estou totalmente de acordo contigo e com o Calil e digo mais, a gente cai feito um patinho com gosto e ainda quer repetir a experiência, que nem criança pedindo “de novo!” e caindo na gargalhada pela milionésima vez com a mesma careta, a mesma piada ou o mesmo susto.

      Quanto ao Walt Disney, ele aparece no trecho que tirei do post do Calil a propósito da morte da mãe do Bambi. Eu até tinha negritado, mas depois desisti, só que diante do teu comentário acho que convém tornar a fazê-lo pra que fique mais claro. E também tinha ensaiado um pê ésse que levava a um velho post meu, Veríssimo, a mãe do Bambi e eu, mas acabei deixando pra lá.

      Ah, bom te ver por aqui, meu amigo.

      Curtir

  7. Guil Kato disse:

    Eu me lembro de ter chorado muito todas as vezes que vi “O Campeão”, e lembro também de todas as associações que fiz: da relação pai e filho, o pai herói, a morte do pai, a perda, a queda do ídolo, a esperança que a gente já sabe de antemão que não tem futuro,… Para mim, que choro mesmo com qualquer coisa já ligeiramente sentimental no cinema ou na TV (eu já disse que choro com qualquer filmeco água com açúcar, ou até mesmo comercial de TV apelativo), “O Campeão” era uma tortura.

    Mas tem filmes que mexeram muito comigo em aspectos muito profundos: “Rapsódia em Agosto” com aquela cena final da velhinha correndo na chuva ao som de cantigas infantis dói muito no fundo de mim; “Bem Vindos ao Paraíso” onde Dennis Quaid interpreta um americano que se apaixona e casa com uma japonesa, retrantando uma coisa que pouco foi divulgada – a existência de campos de concentração de japoneses nos EUA.

    Claro que este dois filmes tem uma relação forte com a origem nipônica dos meus antepassados.

    Mas tem um filme bem antigo e que passava na sessão da tarde que era um sofrimento só e sempre me fazia chorar… “Virtude Selvagem” com Gregory Peck. O garoto do filme sofre, sofre e quando tudo parece melhorar, sofre mais ainda… Falando de bambi: o garoto adota um filhote de cervo (ah vá… veado mesmo) e no final tem que matar o bicho que só traz confusão. É um horror! Eu chorava só de antecipação por tudo… rs

    Curtir

    • Ricardo C. disse:

      Não vi esse com o Gregory Peck, Guil. Já as referências que você cita mostram bem como até somos bastante suscetíveis aos clichês dramáticos, mas que a subjetividade, a idade, o contexto cultural y otras cositas falam mais alto sempre que vem ao caso.

      Curtir

  8. Bruno Cava disse:

    “A vida é bela”, de Benigni, muito triste.

    Mas sem dúvida o mais triste, “Noites de Cabíria”, Fellini, a cena final.

    Curtir

    • Ricardo C. disse:

      Interessante vc citar A vida é Bela, Bruno, porque não lembro direito o que senti pelo filme, especialmente depois que ele ganhou o Oscar, o que costuma interferir negativamente na minha relação com as películas 😉

      Curtir

  9. Guilherme Levy disse:

    O último que me fez chorar foi Dançando no Escuro, do Lars von Trier, com a Bjork. Chorei de emoção com o drama e a música da Bjork e de raiva do Lars- ele conseguiu deixar a Catherine Deneuve “feia” numa cena! FDP!

    Curtir

    • Ricardo C. disse:

      Eu gosto de muitos filmes do Lars von Triers, inclusive quero muito assistir ao último, Melancolia. Mas por alguma razão não assisti a Dançando no Escuro, não lembro por que, e ainda por cima fiquei sem vontade de ver, de novo sem saber por que… Quanto a chorar por alguém tornar a Catherine Deneuve feia, solidarizo-me contigo, é um motivo justíssimo para debulhar-se em lágrimas 😛

      Curtir

  10. Pingback: O Pensador Selvagem

Deixe um comentário

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.