“O Fascismo Eterno” (Umberto Eco)

‘Em 1942, com a idade de dez anos, ganhei o prêmio nos Ludi Juveniles (um concurso com livre participação obrigatória para jovens fascistas italianos — o que vale dizer, para todos os jovens italianos). Tinha trabalhado com virtuosismo retórico sobre o tema: “Devemos morrer pela glória de Mussolini e pelo destino imortal da Itália?” Minha resposta foi afirmativa. Eu era um garoto esperto. 

Depois, em 1943, descobri o significado da palavra “liberdade”. Contarei esta história no fim do meu discurso. Naquele momento, “liberdade” ainda não significava “liberação”.

Passei dois dos meus primeiros anos entre SS, fascistas e resistentes, que disparavam uns nos outros, e aprendi a esquivar-me das balas. Não foi mal exercício.

Em abril de 1945, a Resistência tomou Milão. Dois dias depois os resistentes chegaram à pequena cidade em que eu vivia. Foi um momento de alegria. A praça principal estava cheia de gente que cantava e desfraldava bandeirolas, invocando Mimo, o líder a resistência na área, em alto brado. Mimo, ex-suboficial dos carabinieri, envolveu-se com os partidários do marechal Badoglio e perdeu uma perna nos primeiros confrontos. Apareceu no balcão da Prefeitura, apoiado em muletas, pálido; tentou acalmar a multidão com uma mão. Eu estava ali esperando seu discurso, já que toda a minha infância tinha sido marcada pelos grandes discursos históricos de Mussolini, cujos passos mais significativos aprendíamos de cor na escola. Silêncio. Mimo falo com voz rouca, quase não se ouvia. Disse: “Cidadãos, amigos. Depois de tantos sacrifícios dolorosos… aqui estamos. Glória aos que caíram pela liberdade…”. E foi tudo. Ele voltou para dentro. A multidão gritava, os membros da resistência levantaram as armas e atiraram para o alto, festivamente. Nós, rapazes, nos precipitamos para recolher os cartuchos, preciosos objetos de coleção, mas eu tinha aprendido então que liberdade de palavra significa também liberdade da retórica. 

Alguns dias depois vi os primeiros soldados norte-americanos. Eram afro-americanos. O primeiro ianque que encontrei era um negro, Joseph, que me apresentou às maravilhas de Dick Tracy e Ferdinando Buscapé. Seus gibis eram coloridos e tinham um cheiro bom.

Um dos oficiais (o major ou capitão Muddy) era hóspede na casa da família de dois dos meus companheiros de escola. Sentia-me em casa naquele jardim em que alguns senhores amontoavam-se em torno ao capitão Muddy, falando um francês aproximativo. O capitão Muddy tinha uma boa educação superior e conhecia um pouco de francês. Assim, minha primeira imagem dos libertadores norte-americanos, depois de tantos caras-pálidas de camisa negra, era a de um negro culto em uniforme cáqui que dizia: “Oui, merci beaucoup Madame, moi aussi j’aime le champagne…” Infelizmente, faltava o champagne, mas ganhei do capitão Muddy o meu primeiro chiclete e comecei mastigando o dia inteiro. De noite colocava o chiclete em um copo d’água para que ficasse fresco para o dia seguinte. 

Em maio, ouvimos dizer que a guerra tinha acabado. A paz deu-me uma sensação curiosa. Haviam me dito que a guerra permanente era a condição normal de um jovem italiano. Nos meses seguintes descobri que a Resistência não era apenas um fenômeno local, mas Europeu. Aprendi novas e excitantes palavras como “reseau”, “maquis”, “armée secrète”, “Rote Kapelle”, “gueto de Varsóvia”. Vi as primeiras fotografias do Holocausto e assim compreendi seu significado antes mesmo de conhecer a palavra. Percebi que havíamos sido liberados. 

Hoje na Itália existem algumas pessoas que se perguntam se a Resistência teve algum impacto militar real no curso da guerra. Para a minha geração a questão é irrelevante: compreendo imediatamente o significado moral e psicológico da Resistência. Era motivo de orgulho saber que nós, europeus, não tínhamos esperado passivamente pela liberação. Penso que, também para os jovens norte-americanos que derramaram seu sangue pela nossa liberdade, não era irrelevante saber que atrás das linhas havia europeus que já estavam pagando seu débito. 

Hoje na Itália tem gente que diz que a Resistência é um mito comunista. É verdade que os comunistas exploraram a Resistência como uma propriedade pessoal, pois realmente tiveram um papel primordial no movimento; mas lembro-me dos resistentes com bandeiras de diversas cores. 

Grudado ao rádio, passava as noites — as janelas fechadas e a escuridão geral faziam do pequeno espaço em torno ao aparelho o único halo luminoso — escutando as mensagens que a Rádio Londres transmitia para a Resistência. Eram, ao mesmo tempo, obscuras e poéticas (“Ainda brilha o sol”, “As rosas hão de florir”), mas a maior parte eram “mensagens para Franchi”. Alguém soprou no meu ouvido que Franchi era o líder de um dos grupos clandestinos mais poderosos da Itália do Norte, um homem de coragem legendária. Franchi tornou-se o meu herói. Franchi (cujo verdadeiro nome era Edgardo Sogno) era um monarquista tão anticomunista que, depois da guerra, se uniu a um grupo de extrema direita e foi até acusado de ter participado de um golpe de Estado reacionário. Mas que importa? Sogno ainda é o sonho da minha infância. A liberação foi um empreendimento comum de gente das mais diversas cores. 

Hoje na Itália tem gente que diz que a guerra de liberação foi um trágico período de divisão, e que precisamos agora de uma reconciliação nacional. A recordação daqueles anos terríveis deveria ser reprimida. Mas a repressão provoca neuroses. Se a reconciliação significa compaixão e respeito por todos aqueles que lutaram sua guerra de boa-fé, perdoar não significa esquecer. Posso até admitir que Eichmann acreditava sinceramente em sua missão, mas não posso dizer: “Ok, volte e faça tudo de novo”. Estamos aqui para recordar o que aconteceu e para declarar solenemente que “eles” não podem repetir o que fizeram. 

Mas quem são “eles”?

Se pensamos ainda nos governos totalitários que dominaram a Europa antes da Segunda Guerra Mundial, podemos dizer com tranquilidade que seria muito difícil que eles retornassem sob a mesma forma, em circunstâncias históricas diversas. Se o fascismo de Mussolini baseava-se na ideia de um líder carismático, no corporativismo, na utopia do “destino fatal de Roma”, em uma vontade imperialista de conquistar novas terras, em um nacionalismo exacerbado, no ideal de uma nação inteira arregimentada sob a camisa negra, na recusa da democracia parlamentar, no anti-semitismo, então não tenho dificuldade para admitir que a Aliança Nacional, nascida do MSI (Movimento Social e Italiano), é certamente um partido de direita, mas tem muito pouco a ver com o velho fascismo. Pelas mesmas razões, mesmo preocupado com os vários movimentos neonazistas ativos aqui e ali na Europa, inclusive na Rússia, não penso que o nazismo, e sua forma original, esteja ressurgindo como movimento capaz de mobilizar uma nação inteira. 

Todavia, embora os regimes políticos possam ser derrubados e as ideologias criticadas e destituídas de sua legitimidade, por trás de um regime e de sua ideologia há sempre um modo de pensar e de sentir, uma série de hábitos culturais, uma nebulosa de instintos obscuros e de pulsões insondáveis. Há, então, um outro fantasma que ronda a Europa (para não falar de outras partes do mundo)?
Ionesco disse certa vez que “somente as palavras contam, o resto é falatório”. Os hábitos linguísticos são muitas vezes sintomas importantes de sentimentos não expressos. 

Portanto, permitam-me perguntar por que não somente a Resistência mas toda a Segunda Guerra Mundial foram definidas em todo o mundo com uma luta contra o fascismo. Se relerem Por quem os sinos dobram, de Hemingway, vão descobrir que Robert Jordan identifica seus inimigos com os fascistas, mesmo quando está pensando nos falangistas espanhóis. 

Permitam-me passar a palavra a Franklin Delano Roosevelt: “A vitória do povo americano e de seus aliados será uma vitória contra o fascismo e o beco sem saída que ele representa” (23 de setembro de 1944).

Durante os anos de McCarthy, os norte-americanos que tinham participado da guerra civil espanhola eram chamados de “fascistas prematuros” — entendendo com isso que combater Hitler nos anos 1940 era um dever moral de todo bom norte-americano, mas combater Franco cedo demais, nos anos 1930, era suspeito. Por que uma expressão como “fascist pig” era usada pelos radicais norte-americanos até para indicar um policial que não aprovava os que fumavam? Por que não diziam: “Porco Caugolard”, “Porco Falangista”, “Porco Quisling”, “Porco croata”, “Porco Ante Pavelic”, “Porco nazista”?

Mein Kampf é o manifesto completo de um programa político. O nazismo tinha uma teoria do racismo e do arianismo, uma noção precisa de entartete Kunst, a “arte degenerada”, uma filosofia da vontade de potência e da Übermensch. O nazismo era decididamente anticristão e neopagão, da mesma maneira que o Diamat (versão oficial do marxismo soviético) de Stalin era claramente materialista e ateu. Se como totalitarismo entende-se um regime que subordina qualquer ato individual ao Estado e sua ideologia, então nazismo e estalinismo eram regimes totalitários. 

O fascismo foi certamente uma ditadura, mas não era completamente totalitário, nem tanto por sua brandura quanto pela debilidade filosófica de sua ideologia. Ao contrário do que se pensa comumente, o fascismo italiano não tinha uma filosofia própria. O artigo sobre o fascismo assinado por Mussolini para a Enciclopédia Treccani foi escrito ou inspirou-se fundamentalmente em Giovanni Gentile, mas refletia uma noção hegeliana tardia do “Estado ético absoluto”, que Mussolini nunca realizou completamente. Mussolini não tinha qualquer filosofia: tinha apenas uma retórica.

Começou como ateu militante, para depois firmar a concordata com a Igreja e confraternizar com os bispos que benziam os galhardetes fascistas. Em seus primeiros anos anticlericais, segundo uma lenda plausível, pediu certa vez a Deus que o fulminasse ali mesmo para provar sua existência. Deus estava, evidentemente, distraído. Nos anos seguintes, em seus discursos, Mussolini citava sempre o nome de Deus e não desdenhava o epíteto: “homem da Providência”. Pode-se dizer que o fascismo italiano foi a primeira ditadura de direita que dominou um país europeu e que, em seguida, todos os movimentos análogos encontraram uma espécie de arquétipo comum no regime de Mussolini. 

O fascismo italiano foi o primeiro a criar uma liturgia militar, um folclore e até mesmo um modo de vestir-se — conseguindo mais sucesso no exterior que Armani, Benetton ou Versace. Foi somente nos anos 1930 que surgiram movimentos fascistas na Inglaterra, com Mosley, e na Letônia, Estônia, Lituânia, Polônia, Hungria, Romênia, Bulgária, Grécia, Iugoslávia, Espanha, Portugal, Noruega e até na América do Sul, para não falar da Alemanha. Foi o fascismo italiano que convenceu muitos líderes liberais europeus de que o novo regime estava realizando interessantes reformas sociais, capazes de fornecer uma alternativa moderadamente revolucionária à ameaça comunista. 

Todavia, a prioridade histórica não me parece ser uma razão suficiente para explicar por que a palavra “fascismo” tornou-se uma sinédoque, uma denominação pars pro toto para movimentos totalitários diversos. Não adianta dizer que o fascismo continha em si todos os elementos dos totalitarismos sucessivos, por assim dizer, em “estado quintessencial”. Ao contrário, o fascismo não possuía nenhuma quintessência e sequer uma só essência. O fascismo era um totalitarismo fuzzy[1]. O fascismo não era uma ideologia monolítica, mas antes uma colagem de diversas ideais políticas e filosóficas, uma colmeia de contradições. É possível conceber um movimento totalitário que consiga juntar monarquia e revolução, exército real e milícia pessoal de Mussolini, os privilégios concedidos à Igreja e uma educação estatal que exaltava a violência e o livre mercado?

O partido fascista nasceu proclamando sua nova ordem revolucionária, mas era financiado pelos proprietários de terras mais conservadores, que esperavam uma contrarrevolução. O fascismo do começo era republicano e sobreviveu durante vinte anos proclamando sua lealdade à família real, permitindo que um “duce” puxasse as cordinhas de um “rei”, a quem ofereceu até o título de “imperador”. Mas quando, em 1943, o rei despediu Mussolini, o partido reapareceu dois meses depois, com a ajuda dos alemães, sob a bandeira de uma república “social”, reciclando sua velha partitura revolucionária, enriquecida de acentuações quase jacobinas. 

Existiu apenas uma arquitetura nazista, apenas uma arte nazista. Se o arquiteto nazista era Albert Speer, não havia lugar para Mies van der Rohe. Da mesma maneira, sob Stalin, se Lamarck tinha razão, não havia lugar para Darwin. Ao contrário, existiram certamente arquitetos fascistas, mas ao lado de seus pseudocoliseus surgiram também os novos edifícios inspirados no moderno racionalismo de Gropius. 
Não houve um Zdanov fascista. Na Itália existiam dois importantes prêmios artísticos: o Prêmio Cremona era controlado por um fascista inculto e fanático como Farinacci, que encorajava uma arte propagandista (recordo-me de quadros intitulados Ascoltando all radio un discorso del Duce ou Stati mentali creati dal Fascismo); e o Prêmio Bergamo, patrocinado por um fascista culto e razoavelmente tolerante como Bottai, que protegia a arte pela arte e as novas experiências da arte de vanguarda que, na Alemanha, haviam sido banidas como corruptas, criptocomunistas, contrárias ao Kitsch nibelúngico, o único aceito. 

O poeta nacional era D’Annunzio, um dândi que na Alemanha ou na Rússia teria sido colocado diante de um pelotão de fuzilamento. Foi alçado à categoria de vate do regime pro seu nacionalismo e seu culto do heroísmo — com o acréscimo de grandes doses de decadentismo francês. 
Tomemos o futurismo. Deveria ter sido considerado um exemplo de entartete Kunst, assim como o expressionismo, o cubismo, o surrealismo. Mas os primeiros futuristas italianos eram nacionalistas, favoreciam por motivos estéticos a participação da Itália na Primeira Guerra Mundial, celebravam a velocidade, a violência, o risco e, de certa maneira, estes aspectos pareciam próximos ao culto fascista da juventude. Quando o fascismo identificou-se com o império romano e redescobriu as tradições rurais, Marinetti (que proclamava que um automóvel era mais belo que a Vitória de Samotrácia e queria inclusive matar o luar) foi nomeado membro da Accademia d’Italia, que tratava o luar com grande respeito. 

Muitos dos futuros membros da Resistência, e dos futuros intelectuais do futuro Partido Comunista, foram educados no GUF, a associação fascista dos estudantes universitários, que deveria ser o berço da nova cultura fascista. Esses clubes tornaram-se uma espécie de caldeirão intelectual em que circulavam novas ideias sem nenhum controle ideológico real, não tanto porque os homens de partido fossem tolerantes, mas porque poucos entre eles possuíam os instrumentos intelectuais para controlá-los. 

No curso daqueles vinte anos, a poesia dos herméticos representou uma reação ao estilo pomposo do regime: a estes poetas era permitido elaborar seus protestos literários dentro da torre de marfim. O sentimento dos herméticos era exatamente o contrário do culto fascista do otimismo e do heroísmo. O regime tolerava esta distensão evidente, embora socialmente imperceptível, porque não prestava atenção suficiente ao um jargão tão obscuro. 

O que não significa que o fascismo italiano fosse tolerante. Gramsci foi mantido na prisão até a morte, Matteotti e os irmãos Rosselli foram assassinados, a liberdade de imprensa suspensa, os sindicatos desmantelados, os dissidentes políticos confinados em ilhas remotas, o poder legislativo tornou-se pura ficção e o executivo (que controlava o judiciário, assim como a mídia) emanava diretamente as novas leis, entre as quais a da defesa da raça (apoio formal italiano ao Holocausto).

A imagem incoerente que descrevi não era devida à tolerância: era um exemplo de desconjuntamento político e ideológico. Mas era um “desconjuntamento ordenado”, uma confusão estruturada. O fascismo não tinha bases filosóficas, mas do ponto de vista emocional era firmemente articulado a alguns arquétipos. 

Chegamos agora ao segundo ponto de minha tese. Existiu apenas um nazismo, e não podemos chamar de “nazismo” o falangismo hipercatólico de Franco, pois o nazismo é fundamentalmente pagão, politeísta e anticristão, ou não é nazismo. Ao contrário, pode-se jogar com o fascismo de muitas maneiras, e o nome do jogo não muda. Acontece com a noção de “fascismo” aquilo que, segundo Wittgenstein, acontece com a noção de “jogo”. Um jogo pode ser ou não competitivo, pode envolver uma ou mais pessoas, pode exigir alguma habilidade particular ou nenhuma, pode envolver dinheiro ou não. Os jogos são uma série de atividades diversas que apresentam apenas alguma “semelhança de família”:

1 – 2 – 3 – 4
abc bcd cde def

Suponhamos que exista uma série de grupos políticos. O grupo 1 é caracterizado pelos aspectos abc, o grupo 2, pelos aspectos bcd e assim por diante. 2 é semelhante a 1 na medida em que têm dois aspectos em comum. 3 é semelhante a 2 e 4 e é semelhante a 1 (têm em comum o aspecto c). O caso mais curioso é dado pelo 4, obviamente semelhante a 3 e a 2, mas sem nenhuma característica em comum com 1. Contudo, em virtude da ininterrupta série de decrescentes similaridades entre 1 e 4, permanece, por uma espécie de transitoriedade ilusória, um ar de família entre 4 e 1.

O termo “fascismo” adapta-se a tudo porque é possível eliminar de um regime fascista um ou mais aspectos, e ele continuará sempre a ser reconhecido como fascista. Tirem do fascismo o imperialismo e teremos Franco ou Salazar; tirem o colonialismo e teremos o fascismo balcânico. Acrescentem ao fascismo italiano um anticapitalismo radical (que nunca fascinou Mussolini) e teremos Ezra Pound. Acrescentem o culto da mitologia céltica e o misticismo do Graal (completamente estranho ao fascismo oficial) e teremos um dos mais respeitados gurus fascistas, Julios Evola. 

A despeito dessa confusão, considero possível indicar uma lista de características típicas daquilo que eu gostaria de chamar de “Ur-Fascismo”, ou “fascismo eterno”. Tais características não podem ser reunidas em um sistema; muitas se contradizem entre si e são típicas de outras formas de despotismo ou fanatismo. Mas é suficiente que uma delas se apresente para fazer com que se forme uma nebulosa fascista. 

1.   A primeira característica de um Ur-Fascismo é o culto da tradição. O tradicionalismo é mais velho que o fascismo. Não somente foi típico do pensamento contra reformista católico depois da Revolução Francesa, mas nasceu no final da idade helenística como uma reação ao racionalismo grego clássico. 
Na bacia do Mediterrâneo, povos de religiões diversas (todas aceitas com indulgência pelo Panteon romano) começaram a sonhar com uma revelação recebida na aurora da história humana. Essa revelação permaneceu longo tempo escondida sob o véu de línguas então esquecidas. Havia sido confiada aos hieróglifos egípcios, às runas dos celtas, aos textos sacros, ainda desconhecidos, das religiões asiáticas.
Essa nova cultura tinha que ser sincretista. “Sincretismo” não é somente, como indicam os dicionários, a combinação de formas diversas de crenças ou práticas. Uma combinação assim deve tolerar contradições. Todas as mensagens originais contêm um germe de sabedoria e, quando parecem dizer coisas diferentes ou incompatíveis, é apenas porque todas aludem, alegoricamente, a alguma verdade primitiva. 
Como consequência, não pode existir avanço do saber. A verdade já foi anunciada de uma vez por todas, e só podemos continuar a interpretar sua obscura mensagem. É suficiente observar o ideário de qualquer movimento fascista para encontrar os principais pensadores tradicionalistas. A gnose nazista nutria-se de elementos tradicionalistas, sincretistas ocultos. A mais importante fonte teórica da nova direita italiana Julius Evola, misturava o Graal com os Protocolos dos Sábios de Sião, a alquimia com o Sacro Império Romano. O próprio fato de que, para demonstrar sua abertura mental, a direita italiana tenha recentemente ampliado seu ideário juntando De Maistre, Guenon e Gramsci é uma prova evidente de sincretismo.

Se remexerem nas prateleiras que nas livrarias americanas trazem a indicação “New Age”, irão encontrar até mesmo Santo Agostinho e, que eu saiba, ele não era fascista. Mas o próprio fato de juntar Santo Agostinho e Stonehenge, isto é um sintoma de Ur-Fascismo.

2. O tradicionalismo implica a recusa da modernidade. Tanto os fascistas como os nazistas adoravam a tecnologia, enquanto os tradicionalistas em geral recusam a tecnologia como negação dos valores espirituais tradicionais. Contudo, embora o nazismo tivesse orgulho de seus sucessos industriais, seu elogio da modernidade era apenas o aspecto superficial de uma ideologia baseada no “sangue” e na “terra(Blut und Boden). A recusa do mundo moderno era camuflada como condenação do modo de vida capitalista, mas referia-se principalmente à rejeição do espírito de 1789 (ou 1776, obviamente). O iluminismo, a idade da Razão eram vistos como o início da depravação moderna. Nesse sentido, o Ur-Fascismo pode ser definido como “irracionalismo”. 

3. O irracionalismo depende também do culto da ação pela ação. A ação é bela em si, portanto, deve ser realizada antes de e sem nenhuma reflexão. Pensar é uma forma de castração. Por isso, a cultura é suspeita na medida em que é identificada com atitudes críticas. Da declaração atribuída a Goebbels (“Quando ouço falar em cultura, pego logo a pistola”) ao uso frequente de expressões como “Porcos intelectuais”, “Cabeças ocas”, “Esnobes radicais”, “As universidades são um ninho de comunistas”, a suspeita em relação ao mundo intelectual sempre foi um sintoma de Ur-Fascismo. Os intelectuais fascistas oficiais estavam empenhados principalmente em acusar a cultura moderna e a inteligência liberal de abandono dos valores tradicionais. 

4. Nenhuma forma de sincretismo pode aceitar críticas. O espírito crítico opera distinções, e distinguir é um sinal de modernidade. Na cultura moderna, a comunidade científica percebe o desacordo como instrumento de avanço dos conhecimentos. Para o Ur-Fascismo, o desacordo é traição. 

5. O desacordo é, além disso, um sinal de diversidade. O Ur-Fascismo cresce e busca o consenso desfrutando e exacerbando o natural medo da diferença. O primeiro apelo de um movimento fascista ou que está se tornando fascista é contra os intrusos. O Ur-Fascismo é, portanto, racista por definição. 

6. O Ur-Fascismo provém da frustração individual ou social. O que explica por que uma das características dos fascismos históricos tem sido o apelo às classes médias frustradas, desvalorizadas por alguma crise econômica ou humilhação política, assustadas pela pressão dos grupos sociais subalternos. Em nosso tempo, em que os velhos “proletários” estão se transformando em pequena burguesia (e o lumpesinato se auto exclui da cena política), o fascismo encontrará nessa nova maioria seu auditório. 

7. Para os que se vêem privados de qualquer identidade social, o Ur-Fascismo diz que seu único privilégio é o mais comum de todos: ter nascido em um mesmo país. Esta é a origem do “nacionalismo”. Além disso, os únicos que podem fornecer uma identidade às nações são os inimigos. Assim, na raiz da psicologia Ur-Fascista está a obsessão do complô, possivelmente internacional. Os seguidores têm que se sentir sitiados. O modo mais fácil de fazer emergir um complô é fazer apelo à xenofobia. Mas o complô tem que vir também do interior: os judeus são, em geral, o melhor objetivo porque oferecem a vantagem de estar, ao mesmo tempo, dentro e fora. Na América, o último exemplo de obsessão pelo complô foi o livro The New World Order, de Pat Robertson. 

8. Os adeptos devem sentir-se humilhados pela riqueza ostensiva e pela força do inimigo. Quando eu era criança ensinavam-me que os ingleses eram o “povo das cinco refeições”: comiam mais frequentemente que os italianos, pobres mas sóbrios. Os judeus são ricos e ajudam-se uns aos outros graças a uma rede secreta de mútua assistência. Os adeptos devem, contudo, estar convencidos de que podem derrotar o inimigo. Assim, graças a um contínuo deslocamento de registro retórico, os inimigos são, ao mesmo tempo, fortes demais e fracos demais. Os fascismos estão condenados a perder suas guerras, pois são constitutivamente incapazes de avaliar com objetividade a força do inimigo. 

9. Para o Ur-Fascismo não há luta pela vida, mas antes “vida para a luta”. Logo, o pacifismo é conluio com o inimigo; o pacifismo é mau porque a vida é uma guerra permanente. Contudo, isso traz consigo um complexo de Armagedon: a partir do momento em que os inimigos podem e devem ser derrotados, tem que haver uma batalha final e, em seguida, o movimento assumirá o controle do mundo. Uma solução final semelhante implica uma sucessiva era de paz, uma idade de Ouro que contestaria o princípio da guerra permanente. Nenhum líder fascista conseguiu resolver essa contradição. 

10. O elitismo é um aspecto típico de qualquer ideologia reacionária, enquanto fundamentalmente aristocrática. No curso da história, todos os elitismos aristocráticos e militaristas implicaram o desprezo pelos fracos. O Ur-Fascismo não pode deixar de pregar um “elitismo popular”. Todos os cidadãos pertencem ao melhor povo do mundo, os membros do partido são os melhores cidadãos, todo cidadão pode (ou deve) tornar-se membro do partido. Mas patrícios não podem existir sem plebeus. O líder, que sabem muito em que seu poder não foi obtido por delegação, mas conquistado pela força, sabe também que sua força baseia-se na debilidade das massas, tão fracas que têm necessidade e merecem um “dominador”. No momento em que o grupo é organizado hierarquicamente (segundo um modelo militar), qualquer líder subordinado despreza seus subalternos e cada um deles despreza, por sua vez, os seus subordinados. Tudo isso reforça o sentido de elitismo de massa. 

11. Nesta perspectiva, cada um é educado para tornar-se um herói. Em qualquer mitologia, o “herói” é um ser excepcional, mas na ideologia Ur-Fascista o heroísmo é a norma. Este culto do heroísmo é estreitamente ligado ao culto da morte: não é por acaso que o mote dos falangistas era: “Viva la muerte!” À gente normal diz-se que a morte é desagradável, mas é preciso enfrentá-la com dignidade; aos crentes, diz-se que é um modo doloroso de atingir a felicidade sobrenatural. O herói Ur-Fascista, ao contrário, aspira à morte, anunciada como a melhor recompensa para uma vida heroica. O herói Ur-Fascista espera impacientemente pela morte. E sua impaciência, é preciso ressaltar, consegue na maior parte das vezes levar os outros à morte. 

12. Como tanto a guerra permanente como o heroísmo são jogos difíceis de jogar, o Ur-Fascista transfere sua vontade de poder para questões sexuais. Esta é a origem do machismo (que implica desdém pelas mulheres e uma condenação intolerante de hábitos sexuais não-conformistas, da castidade à homossexualidade). Como o sexo também é um jogo difícil de jogar, o herói Ur-Fascista joga com as armas, que são seu Ersatz fálico: seus jogos de guerra são devidos a uma inveja pênis permanente. 

13. O Ur-Fascismo baseia-se em um “populismo qualitativo”. Em uma democracia, os cidadãos gozam de direitos individuais, mas o conjunto de cidadãos só é dotado de impacto político do ponto de vista quantitativo (as decisões da maioria são acatadas). Para o Ur-Fascismo os indivíduos enquanto indivíduos não têm direitos e “o povo” é concebido como uma qualidade, uma entidade monolítica que exprime “a vontade comum”. Como nenhuma quantidade de seres humanos pode ter uma vontade comum, o líder apresenta-se como seu intérprete. Tendo perdido seu poder de delegar, os cidadãos não agem, são chamados apenas pars pro toto, para assumir o papel de povo. O povo é, assim, apenas uma ficção teatral. Para ter um bom exemplo de populismo qualitativo, não precisamos mais da Piazza Venezia ou do estádio de Nuremberg.

Em nosso futuro desenha-se um populismo qualitativo TV ou internet, no qual a resposta emocional de um grupo selecionado de cidadãos pode ser apresentada e aceita como a “voz do povo”. Em virtude de seu populismo qualitativo, o Ur-Fascismo deve opor-se aos “pútridos” governos parlamentares. Uma das primeiras frases pronunciadas por Mussolini no Parlamento italiano foi:“Eu poderia ter transformado esta assembleia surda e cinza em um acampamento para meus regimentos”. De fato, ele logo encontrou alojamento melhor para seus regimentos e pouco depois liquidou o Parlamento. Cada vez que um político põe em dúvida a legitimidade do Parlamento por não representar mais a “voz do povo”, pode-se sentir o cheiro de Ur-Fascismo. 

14. O Ur-Fascismo fala a “novilíngua”. A “novilíngua” foi inventada por Orwell em 1984, como língua oficial do Ingsoc, o Socialismo Inglês, mas certos elementos de Ur-Fascismo são comuns a diversas formas de ditadura. Todos os textos escolares nazistas ou fascistas baseavam-se em um léxico pobre e em uma sintaxe elementar, com o fim de limitar os instrumentos para um raciocínio complexo e crítico. Devemos, porém estar prontos a identificar outras formas de novilíngua, mesmo quando tomam a forma inocente de um talk-show popular. 

Depois de indicar os arquétipos possíveis do Ur-Fascismo, permitam-me concluir. Na manhã de 27 de julho de 1943 foi-me dito que, segundo informações lidas na rádio, o fascismo havia caído e Mussolini tinha sido feito prisioneiro. Minha mãe mandou-me comprar o jornal. Fui ao jornaleiro mais próximo e vi que os jornais estavam lá, mas os nomes eram diferentes. Além disso, depois de uma breve olhada nos títulos, percebi que cada jornal dizia coisas diferentes. Comprei um, ao acaso, e li uma mensagem impressa na primeira página, assinada por cinco ou seis partidos políticos como Democracia Cristã, Partido Comunista, Partido Socialista, Partido de Ação, Partido Liberal. Até aquele momento pensei que só existisse um partido em todas as cidades e que na Itália só existisse, portanto, o Partido Nacional Fascista.
Eu estava descobrindo que, no meu país, podiam existir diversos partidos ao mesmo tempo. E não só isso: como eu era um garoto esperto, logo me dei conta de que era impossível que tantos partidos tivessem aparecido de um dia para o outro. Entendi assim que eles já existiam como organizações clandestinas. 

A mensagem celebrava o fim da ditadura e o retorno à liberdade: liberdade de palavra, de imprensa, de associação política. Estas palavras, “liberdade”, “ditadura” — Deus meu —, era a primeira vez em toda a minha vida que eu as lia. Em virtude dessas novas palavras renasci como homem livre ocidental. 
Devemos ficar atentos para que o sentido dessas palavras não seja esquecido de novo. O Ur-Fascismo ainda está ao nosso redor, às vezes em trajes civis. Seria muito confortável para nós se alguém surgisse na boca de cena do mundo para dizer: “Quero reabrir Auschwitz, quero que os camisas-negras desfilem outra vez pelas praças italianas!”. Ai de mim, a vida não é fácil assim! O Ur-Fascismo pode voltar sob as vestes mais inocentes. Nosso dever é desmascará-lo e apontar o indicador para cada uma de suas novas formas — a cada dia, em cada lugar do mundo. Cito ainda as palavras de Roosevelt: “Ouso dizer que, se a democracia americana parasse de progredir como uma força viva, buscando dia e noite melhorar, por meios pacíficos, as condições de nossos cidadãos, a força do fascismo cresceria em nosso país” (4 de novembro de 1938). Liberdade, liberação são uma tarefa que não acaba nunca. Que seja este o nosso mote: “Não esqueçam”. 

E permitam-me acabar com uma poesia de Franco Fortini:

Sulla spalletta del ponte
Le teste degli impiccati
Nell’acqua della fonte
La bava degli impiccati
Sul lastrico del mercato
Le unghie dei fucilati
Sull’erba secca del prato
I denti dei fucilati 
Mordere l’aria mordere i sassi
La nostra carne non à più d’uomini
Mordere l’aria mordere i sassi
Il nostro cuore non à più d’uomini.
Ma noi s’è letto negli occhi dei morti
E sulla terra faremo libertà
Ma l’hanno stretta i pugni dei morti
La giustizia che si farà.  Na amurada da ponte
A cabeça dos enforcados
Na água da fonte
A baba dos enforcados
No calçamento do mercado
As unhas dos fuzilados
Sobre a grama seca do prado
Os dentes dos fuzilados 
Morder o ar morder as pedras
Nossa carne não é mais de homens
Morder o ar morder as pedras
Nosso coração não é mais de homens
Mas lemos nos olhos dos mortos
E sobre a terra a liberdade havemos de fazer
Mas estreitaram-na nos punhos os mortos
A justiça que se há de fazer.’

 
Umberto Eco, O Fascismo Eterno, in: Cinco Escritos Morais.
Tradução: Eliana Aguiar, Editora Record, Rio de Janeiro, 2002.

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Garatujas de um domingo covidiano

Não sei você, mas sigo gostando mais dos ditos perdedores. Apreço maior por aqueles tão envolvidos com as dores de outros mais à margem e à míngua do que eles que, por isso mesmo, cagam e andam para essa conversa sobre winner’s e loser’s tão em voga. É que esses termos, essas expressões bem ao gosto dos pastores de igrejas neopentecostais, dos coaches, dos autodenominados mentores, dos instrutores de mindfulness, simplesmente estão fora do seu campo semântico. O tempo a perder deles é outro.

E um reparo: não é apreço, é inveja.

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Duas notinhas bestas sobre o confinamento

Primeira. Sim, o feijão começou a ser preparado às 7:30 (tava de molho desde ontem, como dizem que convém) e ficou pronto ainda agora. Um vidrinho de molho de pimenta malagueta sem graça foi aberto, vertido em outro frasco, amassado um pouco para soltar as sementes e apurar o gosto, pondo-se nele mais vinagre de maçã, outro tiquinho de açúcar, cinco colheres de azeite extravirgem e três dentes de alho que não constavam dos ingredientes da receita original. Além disso também ficou pronta uma farofinha de manteiga e alho e tudo será acompanhado pelo magnífico strogonoff e o arroz soltinho de ontem, sendo que uma das duas latas de cerveja acabamos de abrir, dando início aos trabalhos às… putz, 10:30 da manhã!, mas felizes porque o almoço já está pronto e intrigados com esse relógio que resolveu passar as horas devagar demais.

Segunda. Ontem de manhã minha mulher quis sair para fazer as compras, considerando que só eu vinha fazendo isso e ela precisava sair de casa um tiquinho que fosse, a despeito da insegurança que dá. Depois de comprar num hortifruti um pouco mais distante de casa algumas verduras, legumes e uma marca de iogurte que só vende lá (abre parêntese: uma delícia, mas custa caro pra car%&*# — R$ 8,99 –, por isso é só um potinho, um litro de leite e fazemos iogurte de noite, aquela receita de praxe, enrolamos o “tapaué” em dois panos de prato, deixamos dormir no forno e de manhã temos mais ou menos um litro de iogurte lindo a ser posto imediatamente na geladeira pra terminar de apurar. Recomendo pra cacete! Fecha parêntese), ela resolveu comprar mais algumas coisas no supermercado da mesma rua, alguns metros adiante. Na hora de providenciar algum doce pra gente optou pelo leite condensado, aquele coringão de mil e uma utilidades, e dirigiu-se ao final do corredor onde ele costuma ficar. Foi justo lá que de repente, do nada, duas moças, uma meio fortinha, de roupa de ginástica, e outra mais mirrada, de bermuda e camiseta, começaram a discutir, ouvindo-se no meio dos gritos “… que o leite condensado é meu!” — ao que parece uma queria duas latas, outra quatro e deu pra entender que na prateleira não havia as seis que satisfariam a todo mundo — e as duas se atracaram, foram ao chão e, na contramão do que se esperaria, coube à mirradinha ficar por cima da fortinha e dar com uma das latas de leite condensado na testa da outra, sangue jorrando e tudo e a minha companheira, que costuma ser boa de resolver brigas, desta vez optou por assistir de camarote, que de vez em quando ela merece aliviar as tensões, filha do bom Deus que é. Se bem que quando viu a latada na testa gritou “lata não, é covardia!”, enquanto uns funcionários parrudos e mascarados chegavam pra resolver a contenda, concordando com ela que a latada fora apelação, ela acrescentando que tinha de ter sido no braço, aí sim era justo, mas ficando um pouco amuada por não ter conseguido pegar uma latinha sequer do tal leite de mil e uma utilidades, mesmo feliz por ter uma história nonsense pra contar assim que chegasse em casa.

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Domingueira

Para quê? Não há. E tampouco por que. À falta dos dois primeiros, cá para nós, de pouco adianta qualquer como. E então? Inventem-se alguns para quês e porquês, pois, caso contrário só ao medo do nada — ou ao medo da dor que antecederá o nada — caberá segurar as pontas soltas, trancar o porão onde moram os ogros e as bestas e ainda por cima prender a barafunda de radicais livres que nos oxidam os órgãos, a memória e os afetos. Daí que é tarefa árdua e inglória demais para um temor só, cazzo, mesmo que seja para um desses medos bem fornidos e assentados, dos que sopraram trinta e oito velas ou mais, choraram nos ombros de terrores noturnos, deambularam ladeados por síndromes do pânico, deitaram em divãs, passearam por todo o abecedário da farmacopeia presente e futura e, apesar de ateus ou agnósticos, fizeram terapia de regressão a vidas passadas, Fischer-Hoffman, grito primal, ébrios de Daime e de respiração holotrópica e depois deitaram em posição fetal porque nada adiantou. Insistir que esse medo da morte maduro, estruturado, com um pouquinho de dor na lombar denunciando a idade dê conta da gente é “pedirle peras al olmo”, sobrecarregar o pobre coitado. Melhor tratar de inventar sentido ou, vá lá, descobri-lo. Pode que seja menos contraproducente. Resta, porém, estar um pouco afim de embrenhar-se na empreitada, porque dá um trabalho danado e não há garantias de que se sustente ou sequer que funcione. Topa, mesmo assim?

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in Feliz dia do Professor

Catatau

Debret

É flagrante ver o jornal dizendo que as pessoas precisam “se qualificar”, de um lado, e os dados dizendo que o Brasil tem índices de produtividade pífios, de outro.

Essa seria uma velha e manjada conversa, se a escola não tivesse parado de ensinar o seguinte: o fato é que o Brasil nunca foi muito afeito à produtividade, e sim à produção conforme conveniências. Nunca importou muito se somos produtivos ou damos lucro. O que importou de verdade é se o lucro foi para o senhorio do Engenho. É o que explica termos abandonado a escravidão tão tardiamente. O escravo sempre foi uma solução cômoda para o brasileiro. Basta ver o Manual do Agricultor Brasileiro, verdadeiro livro de coaching e de CEO do século XIX, misturando liberalismo econômico com pregações sobre escravidão.

Se a coisa mudou? Experimente ir a um serviço privado qualquer para ver (como se…

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Não tá morto quem peleia

Tem aquela história do primo do irmão de um colega de escola, lá com seus dezoito anos, que depois de deixar uma amiga em casa ouviu do amigo e vizinho, sentado no banco do carona: “Imagina a gente voltar pra casa de marcha à ré?”. Pois o motorista não se fez de rogado, engatou a ré e começou a andar assim em direção à casa. O amigo primeiro riu, depois disse “para com isso”, então falou “deixe de ser criança”, de novo sem sucesso, depois xingou o amigo — e nada –, daí resolveu inverter a tática e mandou um “então vai, acelera!” e o primo do irmão do colega de escola nem tchuns, firme, de marcha à ré, até o amigo e vizinho no banco de carona entender que nada o demoveria daquela loucura e se encolher no banco, mudo, sem ter mais o que fazer, metade do caminho já vencida.

Não lembro do dia em que essa história se deu, mas tenho para mim que era um domingo, sete de outubro, lá pelas dez da noite. Porque depois da incredulidade do amigo, da preocupação, desespero e depois raiva, seguidos de um silêncio de puro desalento, o primo do irmão do colega de escola resolveu parar, manobrar e tomar o rumo de casa de outra forma, de um jeito mais vinte oito de outubro, mudando aquele retroceder tão equivocado, decerto com a ajuda daquele tempo para refletir sobre a direção a tomar e como prosseguir — uns vinte um dias, diria eu.

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Tendências

Há o discurso dedo na cara, cenho franzido, que moraliza de maneira fulanizada e persecutória, buscando que o seu objeto admita, assuma e peça perdão, compungido, embora nunca vá ser de fato perdoado.

Há o discurso escrachado, de humor duvidoso, quase sempre cínico e ao mesmo tempo sonso, que ri da desgraça alheia e debocha dos que desaprovam seu estilo e método.

Há plateias para os dois, com fila na porta para aplaudi-los, muitos com um medo danado de não conseguirem entrar e acabarem sendo o foco de um ou outro um desses discursos.

E para completar, o refrigerante é sem gás, a pipoca é velha, acabou o sal e se você gosta de manteiga é bom saber que ela está um ranço só.

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Efemérides

3 de junho

1553 – Inauguração da Universidade do México.
1749 – Fundada a Universidade do Panamá, denominada Universidad de San Javier.
1875 – Morre George Bizet, músico francês.
1901 – Nasce José Lins do Rego, escritor brasileiro.
1906 – Nasce Josephine Baker, cantora, atriz e dançarina norte-americana.
1908 – Nasce Mário Filho, jornalista brasileiro.
1922 – Nasce Alain Resnais, diretor de cinema francês.
1925 – Nasce Tony Curtis, ator norte-americano.
1926 – Nasce Allen Ginsberg, poeta americano.
1931 – Nasce Raul Castro, militar e político cubano.
1963 – Morre o Papa João XXIII.
1964 Eu nasci.
1965 – O astronauta Edward White realiza um passeio espacial de 20 minutos antes de voltar à nave Gemini IV.
1977 – Morre Roberto Rosselini, cineasta italiano.
1991 – Morre o aiatolá Ruhollah Khomeini, líder religioso iraniano.
2001 – Morre Anthony Quinn, ator de origem mexicana e eterno Zorba, o Grego.
2016 – Morre Muhammad Ali, lutador norte-americano.

Dia de São Carlos Lwanga, santo católico e mártir durante o reinado de Muanga II, de Buganda.
Dia conscientização contra a obesidade mórbida infantil.
Dia do Escrevente de Cartório.

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Trabalenguas

Tegucigalpa, Kota Kinabalu, Tlacotalpan. Nhandeara. E Fez, claro, pegando o ferry boat em Algeciras como se fosse pra Itaparica. Por quê? Porque sonoras. “Onde você mora?” “Te-gu-ci-gal-pa”, com todas as sílabas bem tônicas. “Pra onde você vai?” “Ué, pra Tla-co-tal-pan, fincar raízes, passando primeiro em Nhandeara, que os sequilhos de lá são dos deuses”. E antes que você pergunte: porque sim, deu a hora. Só não queira saber hora de que, porque estou é contando os segundos.

Entendeu nada, não é? Pois lamento, ainda mais por te deixar em má companhia — a minha, claro que.

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Um gosto ora bom ora ruim, ora.

Meio-dia e meia, a hora em que cheguei na avenida Atlântica. Uma concentração até que significativa, pena que só se estendia pelo quarteirão entre a Figueiredo de Magalhães e a Siqueira Campos. Muitas bandeiras e vários balões da CUT e de outras centrais sindicais, como não podia deixar de ser sobre um evento convocado também por eles. Até ambulantes traziam coletes vermelhos, mas as roupas da turma não tinham alguma cor que predominasse. Rê e eu tratamos logo de encontrar adesivos para colar em nossas camisetas pretas; afinal, a ocasião assim pedia. Como não encontramos ninguém distribuindo naquela hora, perguntamos a uns garotos totalmente adesivados onde tinham conseguido os deles e, com o maior coleguismo, devo reconhecer, os garotos resolveram nos oferecer alguns dos que ostentavam orgulhosos, “podem pegar os que quiserem”. Eu buscava por um que tivesse escrito eleições gerais e diretas já; a Rê por sua vez queria um das diretas na cor branca e pronto. Quando vimos, cada um já estava bem com uns quatro. O clima, mais de festa do que de revolta, vinha envelopado por uma névoa que não lembro de ver por aqui há tempos. Inevitável imaginar que as dezenas de ambulantes fazendo churrasquinho em plena avenida ajudassem a engrossá-la — quantidade bem mais significativa do que a turma dos cannabistas, esses sim mais escassos do que o esperado, vai ver muitos por restrições médicas, convém evitar excessos ao chegar a certa idade. Enquanto isso, sobre o caminhão que centralizava o comício uma das filhas do Taiguara, acho que a Imyra, cantava “Universo no teu corpo” — quase escrevi “Universo em desencanto”… –, essa mesma do

Eu desisto
Não existe essa manhã que eu perseguia
Um lugar que me dê trégua ou me sorria
E uma gente que não viva só pra si

Só encontro
Gente amarga mergulhada no passado
Procurando repartir seu mundo errado
Nessa vida sem amor que eu aprendi

Por uns velhos vãos motivos
Somos cegos e cativos
No deserto do universo sem amor

E é por isso que eu preciso
De você como eu preciso
Não me deixe um só minuto sem amor.

Aquilo, claro, foi bem mais do que um indicador. (E o meu autodenunciado ato falho foi só um complemento.)

Algumas pessoas começaram a aparecer no alto do carro de som. Uns sem abrir a boca, outros falando bem — Bete Mendes, minha querida vizinha! –, enquanto terceiros eu bem preferia que não tivessem se manifestado. Foi só uma certa deputada do PCdoB começar a discursar e achei melhor entrarmos num restaurante e almoçar. Se demorássemos mais alguns minutos ali, perigava lembrar dos anos de apoio do partido dela a diversas administrações pouco louváveis desta cidade, o que acabaria por me tirar o apetite. Então fomos, almoçamos e voltamos já sem o risco do estômago vazio.

Havia tudo que é tipo de gente, como previsto. Até o povo do “volta, Dilma” deu o ar da graça, embora fossem minoria, considerando que não era exatamente essa a pauta, apesar da quase unanimidade quanto ao uso do termo “golpe”. Cabelos grisalhos junto com a molecada desconstruída, uns e outros com seus bottons vermelhos de “diretas já!” que supus tirados de velhas caixas empoeiradas guardadas há décadas e feitos para a emenda Dante de Oliveira. (Não eram os antigos, apesar do jeito de.) E esse cheiro de trinta e três anos atrás misturado à fumaça de churrasquinho e aos chicobuarqueanos “Apesar de Você” e “Vai Passar” deram em mim e na Rê arrepios tanto de emoção quanto de um melancólico amargor: como assim ter que entoar esses cantos, de novo, e por motivos tão parecidos?

É, aquele foi o meu sinal. Já ouvira Bete Mendes, Teresa Cristina, Otto, Mart’nalia, Osmar Prado e outros mais. Tinha até muita vontade de ver Mano Brown, Caetano e Milton, imaginar se diriam algo para além de suas canções, mas aquela fora mesmo a minha cota deste domingo, com um quê de déjà vu escasso do frescor de décadas atrás. (Sorte minha não ver fantasmas. Já pensou o Ulisses, o Teotônio e outras tantas figuras surgindo no meio do fog e do fumacê os churrasquinhos? Credo, te esconjuro, pé de pato mangalô treis veis!)

Mas tudo bem, garanto que vou renovar minhas energias. Afinal, é só o começo da trabalheira que ainda dará (e daremos). E o que importa, o que importa mesmo é que amanhã vai ser outro dia. Porque tem que.

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