Pensem no Haiti, mas não se esqueçam da Faixa de Gaza

Ainda bem que há gente em Gaza trabalhando, e muito, para tentar amenizar o sofrimento daquele campo de concentração que não ousa dizer o nome. Traduzo algumas histórias publicadas no jornal Página 12. Se não quiserem ler tudo, guardem para depois. Só não esqueçam de ler, pois já basta a indiferença frente ao sofrimento da população da Faixa de Gaza, algo que fala mal de toda espécie humana.

E por favor, nada de papo furado sobre antissemitismo, atitude que nenhum amigo judeu jamais viu em mim. Deplorar as consequências de uma perversa política de destruição impetrada pelo Estado de Israel não equivale a querer a destruição desse Estado, e muito menos de sua população.

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[Página|12, quinta-feira, 28 de janeiro de 2010]

“A vida merece ser vivida”

Programa de Saúde Mental da Comunidade de Gaza*

Após um ano desde a intervenção que o governo de Israel batizou de Chumbo Fundido, o Programa de Saúde Mental da Comunidade de Gaza apresenta resultados de seu trabalho com crianças e adolescentes que sofreram traumas físicos e psíquicos.

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Osama, nove anos, vive com a família em Beit Hanon, próximo da fronteira entre a Faixa de Gaza e Israel. A família possui um modesto armazém numa sala dentro da própria casa. Fadi, o irmão mais velho, era o responsável pelo negócio, mantido aberto mesmo durante a guerra. Certo dia Faid abriu o armazém, como de costume. Na mesma hora Osama, que estava na casa de sua tia, decidiu voltar para casa. No caminho, ouviu o som de um míssil lançado pelas forças israelenses. Parecia muito próximo. Todos nas ruas ficaram aterrorizados, inclusive Osama. Enquanto isso, Fadi resolveu sair do armazém para ver onde cairia o míssil, mas acabou mortalmente ferido. Osama, que já estava chegando, presenciou tudo, inclusive a morte do seu irmão.

Ele reagiu com um grave ataque de pânico, somado a um leve ferimento nas costas. Entrou em casa gritando e chorando, depois de ver seu irmão morrer diante dos seus olhos. Sua família ainda não sabia da morte do filho e Osama não conseguiu dizer nada, até que eles saíram e viram o cadáver.

Depois do fim da guerra em Gaza, Osama voltou à escola, como todos os outro alunos. Mas depois de um certo período começou a apresentar uma série de sintomas, exigindo uma intervenção de parte da assistente social da escola. Fizeram contato com a família decidiu-se que ele iria ao Centro Comunitário do Programa de Saúde Mental da Comunidade de Gaza.

Depois de examinar o caso de Osama, forma diagnosticados sintomas que incluíam: ansiedade; excessiva violência com as outras crianças; enurese noturna; temor, desencadeado por motivos triviais; problemas com seus irmãos; choro contínuo; lembrança obsessiva da cena da morte do seu irmão.

A equipe do Centro Comunitário de Gaza preparou um programa terapêutico, depois de fazer exames médicos considerados necessários. O programa incluía abordagens terapêuticas expressivas, especialmente ludoterapia e desenho livre; procurou-se também facilitar a catarse. O programa terapêutico incluiu também o acompanhamento da família, especialmente a mãe, que bastante deprimida e sem condições de enfrentar o trauma da perda de Fadi, seu filho mais velho. Toda a família necessitava de um intervenção terapêutica e de apoio psicológico, depois dos graves acontecimentos vividos por eles; tratou-se de colocar em evidência e modificar os pensamentos negativos. Trabalhou-se também no fortalecimento de sua rede de apoio social.

A partir das sessões terapêuticas e do conjunto de intervenções, Osama começou a se mostrar mais aberto aos demais. A maioria dos sintomas que padecera desapareceram. Começou a brincar com seus amigos e com seus irmãos, e sua concentração nas tarefas escolares melhorou.

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Loai, dez anos

No dia 14 de janeiro de 2009 Loai,  dez anos, foi gravemente ferido num ataque aéreo israelense que atingiu sua família em Beit Lahia, Faixa de Gaza. Acabava de sair, junto com seu pai e um primo, da escola em que sua família vivia há 15 dias, depois de ter tido que abandonar sua casa. Eles tentavam voltar para lá em busca de comida, cobertores e outros pertences, já que a escola estava cheia de gente sem sequer o básico para viver; eram mais de sessenta pessoas numa sala de aula.

Os ferimentos causados pelo ataque aéreo deixaram Loai cego, com lesões na cabeça e numa das mãos. Seu primo acabou morto. Além do mais, em função do ininterrupto bombardeio israelense, Loai ficou na rua sangrando durante uma hora e meia, sem que ninguém pudesse se se aproximar; mesmo seu pai, que estava a poucos metros dele, não pôde dar sequer um passo para salvar seu filho. O próprio Loai tentou se arrastar para alcançar o pai, mas não conseguiu. Quando o bombardeio diminuiu, algumas vizinhas ajudaram Loai, levando-o para um lugar seguro onde seu pai pode resgatá-lo. Foi então levado de ambulância para o hospital Kamal Odwan, e posteriormente para a Arabia Saudita, acompanhado pelo pai, onde recebeu tratamento.

Loai era uma criança ativa e inteligente. Cedo tornou-se o braço direito do seu pai no modesto comércio que os ajudava a cobrir suas necessidades básicas. Pensava sempre em comprar uma bicicleta como a de outras crianças. Queria ser um homem de negócios. Loai era muito apegado à família, especialmente ao irmão mais velho, Rajab, que por sua vez tinha dois filhos, Raed e Rajab Junior. Rajab morreu pouco depois, no dia 16 de fevereiro, no último ataque israelense sobre Gaza, atingido por estilhaços enquanto trabalhava numa fazenda.

Em tratamento na Arabia Saudita, Loai não soube que seu irmão morreu. Ao voltar, trouxe presentes para ele, esperando que Rajab fosse o primeiro a abraçá-lo. Quando soube da morte do irmão, sofreu um choque. Loai ainda espera que seu irmão reapareça, continua com esperanças de vê-lo. Crê que se o seu irmão estivesse vivo ele se sentiria mais forte e poderia esquecer sua deficiência.

Porém, ao voltar da Arabia Saudita, seu sobrinho Rajab Junior aproximou-se muito dele e lhe deu apoio. De qualquer forma, Loai, transformado num ser desamparado que depende dos outros, tornou-se inseguro e receoso de dar qualquer passo adiante em sua vida. Passou a preocupar-se o tempo todo com seu futuro, temendo cair a cada instante. Tornou-se incapaz de alcançar seus sonhos mais simples. Conseguiu andar de bicicleta, mas só à noite, com ajuda de sua avó, que é quem se ocupa de acompanhá-lo durante essas horas.

Loai foi encaminhado pela Associação Majid, uma organização civil que trabalha com o Centro Comunitário do Programa de Saúde Mental da Comunidade de Gaza. Quando o psicólogo Rawy a Hamam foi vê-lo em sua casa, Loai sofria de sintomas de estresse pós-traumático que incluíam insonia, ansiedade, sentimentos de culpa e raiva em relação a sua família, dor paralisante pela perda do irmão. Perturbava-se com facilidade por qualquer razão.

Providenciou-se um programa de intervenção familiar a Loai e sua família, onde o menino pudesse descarregar suas emoções, expressar seus sentimentos e encarar as circunstâncias que se lhe apresentavam, através de atividades diárias concentradas nos pontos fortes dele. O Centro continua acompanhando o caso de Loai y mantém contato com sua família e sua escola. Nesse acompanhamento verificou-se um notório progresso em Loai. Ele começou a expressar seus medos e suas preocupações. Conseguiu tirar um pouco o foco que colocava em sua deficiência, e começou a pensar em seus sonhos e em seu futuro.

Loai acredita ainda que a perda da visão não é definitiva, continua na expectativa de que um dia será capaz de enxergar outra vez. Mas também parece determinado a que sua cegueira não seja um obstáculo nem lhe impeça de viver como as outras crianças.

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Fathia, 18 anos

Fathia Iz Al Deen Mussa, 18 anos, do bairro Al Sabra da Cidade de Gaza, contou o seguinte em seu depoimento para o Programa de Saúde Mental da Comunidade de Gaza, ao término da intervenção militar israelense. “Eu era a única que tinha ficado em casa. Não quis sair até que meus pais, meu irmão Waheed e Mohammed e minha irmã Noor fossem evacuados e levados para o hospital. Mas eu sabia que estava enganando a mim mesma com a esperança de que ainda estivessem vivos. Desejei ter morrido com eles. Esperei que levassem os corpos para casa, para prestar-lhes as últimas homenagens, mas nunca chegaram: os corpos ficaram tão destroçados que não havia possibilidade de serem reconhecidos. Era muito difícil identificá-los.”

“Dois meses y meio mais tarde — contou —, ainda tenho medo de ficar sozinha, às vezes até mesmo de ficar sozinha no banheiro. Tenho dificuldade para dormir, lembro de tudo o que aconteceu. Nunca esquecerei do sangue e dos pedaços dos corpos da minha família espalhados ao redor da nossa casa. Aquela noite fiquei na casa do meu avô Abu Sameer Al Jarah, junto com minhas irmãs Hannen e Sabreen. Não conseguia entender o que estava acontecendo comigo. Minha perna estava ferida, mas só percebi quando à noite ela começou a doer. No dia seguinte tiraram estilhaços e cacos de vidro da minha perna.”

O atendimento clínico e a avaliação do caso de Fathia foram efetuados pelos psicólogos Rawya Hamam e Insherah Zakout. Com o fim da intervenção das forças armadas israelenses, uma equipe de assistentes sociais e profissionais do Programa de Saúde Mental da Comunidade de Gaza visitou os sobreviventes da família Mussa. A família sofria de severos sintomas de estresse pós-traumático, incluindo insonia, pesadelos e perda de apetite. Também sofriam de apatia, desânimo e depressão.

A equipe preparou uma intervenção terapêutica para a família descarregar suas emoções, expressar seus dolorosos e descrever com detalhes cada evento por que passaram.as circunstâncias que se lhe apresentavam, A equipe também conversou com eles sobre as experiências que tiveram, explicando-lhes sobre os sintomas e reações considerados normais em casos como aqueles, utilizando uma abordagem psicoeducativa. A equipe ressaltou a importância de fortalecer a rede de apoio social e de trabalhar para corrigir os sentimentos e pensamentos negativos. Durante o trabalho com a família, a equipe se concentrou nos pontos positivos dos indivíduos, ajudando-os a formular planos para o futuro. Uma das meninas resolveu unir-se ao Projeto de Empoderamento das Mulheres do Programa de Saúde Mental, sendo treinada no uso de técnicas que podem ajudar a aliviar os sintomas do transtorno por estresse pós-traumático, como a respiração profunda e o relaxamento. A família recebe tratamento por meio de visitas semanais em sus casa. O acompanhamento do caso de Fathia registrou sua grande melhora; ela começou a conversar com outras pessoas, e começou também a pensar em trabalhar e em depender de si mesma.

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* Organização não governamental fundada em 1990. Seu diretor é Riyad Al Zanoun. Entre os membros do seu Conselho Assessor estão: Inge Genefke, do Conselho Internacional de Reabilitação para Vítimas de Tortura, da Dinamarca; Henrik Pelling, especialista en psiquiatria infantil, da Suécia; Helen Bamber, da Fundação médica da Grã Bretanha; Ruchama Marton, de Médicos pelos Direitos Humanos, de Israel. Texto extractado do informe A vida merece ser vivida, publicado no primeiro aniversário da intervenção militar israelense em Gaza.

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“A justiça é curativa”

PSMCG

Há um ano, durante o ataque israelense sobre Gaza, mais de 1400 palestinos morreram e 5000 ficaram feridas, na maioria civis. Centenas de pais e filhos foram atingidos por disparos ou explosões, ou queimados até a morte com fósforo branco. Milhares de crianças ficaram sem lar e foram levadas a refúgios temporários e barracas, lá permanecendo por longos períodos. Suas feridas psicológicas permanecem escassamente suturadas e ainda abertas. O fim da guerra não equivale ao fim da dor e do sofrimento. No Programa de Saúde Mental da Comunidade de Gaza, diariamente presenciamos o impacto catastrófico dessa violência. Sem que se deixe de atender aos danos e à agonia causados pela ocupação, uma questão permanece: como terá sido moldada, a partir destas experiências de vida, a geração emergente? Vemos como uma população desconsolada e com raiva luta para lidar com perdas angustiantes que ameaçam todos os aspectos do seu crescimento, desenvolvimento e bem-estar psicológico.

O Programa de Saúde Mental da Comunidade de Gaza procura desenvolver a resiliência da comunidade, especialmente nas crianças. Nosso trabalho é crítico, mas sabemos que a terapia não é suficiente para lidar com a quantidade e a intensidade do sofrimento que enfrentamos. Para as feridas de Gaza, a justiça é a única modalidade de tratamento efetiva a longo prazo. Para las vítimas, a justiça é curativa. Acreditamos que um mundo sem justiça é um lugar perigoso, um campo de cultivo para o desamparo e o desânimo, um criatório de pessoas desesperadas sem nada a perder. Nossa responsabilidade é a de ajudar a prevenir esta situação e criar um ambiente de esperança, onde a paz e a justiça possam prevalecer.

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7 respostas para Pensem no Haiti, mas não se esqueçam da Faixa de Gaza

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  2. Gilberto Agostinho disse:

    É aquela mesma história, ano passado foi o Tibet e este ano será o Haiti. Já Gaza, Georgia, África, ninguém está nem aí… ninguém nem chega a ficar sabendo o que acontece. Parece realmente ser necessário um sensacionalismo barato para tocar as pessoas e fazer com que estas, talvez por um sentimento de culpa, colaborem de alguma forma.

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    • Ricardo C. disse:

      Concordo, Gilberto, mas às vezes acho que é tudo muito pior, já que em tempos de pregação anti-ideológica, anti-intelectual e pró-pragmatismo (pseudo)despolitizado, as necessárias iniciativas humanitárias, políticas ou de qualquer outra ordem acabam esvaziadas feito um post de mais de dois dias ou uma tuitada de mais de 10 minutos. Por sorte há gente que não se pauta por esses parâmetros e segue trabalhando, com ou sem a cobertura de qualquer mídia.

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  4. Luiz disse:

    Grande lembrança, Ricardo.

    Particularmente me dói que, nesse assunto e em outros, tantas esperanças de mudança que 1 ano atrás considerávamos ao alcance da mão, estão hoje submersas no dia-a-dia da politica interna do Império.

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  6. Alba disse:

    De fato, o sofrimento em Gaza é imenso, principalmente depois da última campanha e os profissionais que trabalham para minorar esta dordevem ser louvados sempre, claro.

    Mas o pobre Haiti, parece-me, está numa situação bem pior do que Gaza e não só por conta do terremoto. É só lembrar que foi exatamente a colônia mais rica das Américas – a maior exportadora de açucar e café.

    No entanto, quando ESCRAVOS e não camadas médias ou elites, tomam em armas para proclamar a primeira república das Américas, em 1804, o cerco ao país foi total e por séculos. Não por acaso eu diria.

    Donde o empobrecimento do país, reduzido a escombros ANTES do terremoto.

    Finalmente, se não houver seriedade nas declarações que falam em reconstruir o país, daqui a algum tempo, outro terremoto, ou um tufão, nos trarão noticias dos haitianos novamente. 😦

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