Solilóquio, fingindo conversa

Acabei de ler no Milton, meu famoso “vizinho de condomínio“, trechos da entrevista que o compositor iugoslavo (isso mesmo, você leu direito, é como o próprio se considera) Goran Bregovic deu para o jornal El País.  E sem nem perceber, embarquei na canoa de emoções do Milton. (Leia o post!) É assim que o texto dele termina:

É uma boa entrevista. O que me emocionou foi a referência que ele fez a sua biblioteca perdida:

‘Com a guerra perdi tudo e também minha biblioteca. Podes começar tua vida duas vezes, mas não podes começar duas vezes uma biblioteca.’

Eu nunca tinha pensado nisso. Uma biblioteca pessoal é algo que não se recomeça. Ou ela é inteira ou é um amontoado. Uma biblioteca sem as tantas bobagens lidas durante a adolescência, sem as anotações que não consigo deixar de fazer nos livros e sem as anotações dos amigos, deixaria de contar à sua maneira minha história e a de meu tempo. Eu não iria morrer sem esses 3000 ou mais paralelepípedos cheios de pó mal organizados às minhas costas. Mas perderia o meu mais importante meio de recordações, pois só consigo chegar ao Milton de 15 anos quando abro O Lobo da Estepe e constato o quanto amei e manuseei aquele exato livro que hoje leria com enfado. E quando abro Baía dos Tigres sei onde estava e o que pensava enquanto o lia e o mesmo ocorre com quase todos os outros. Sei lá por quê, minha vida tem largos períodos sem fotos e minha memória associa-se sempre aos livros. Não sei se esta é uma sensação comum às pessoas que leem permanentemente. Não sei mesmo. Aliás, antes do dia de hoje nem sabia que uma biblioteca não se recomeçava…

[Desembarco agora da canoa do Milton e subo na minha, que estava ao lado.]

O que o Milton não sabe — e nem poderia, já que não nos conhecemos, só trocamos curtas mensagens por email e deixamos eventuais comentários nos posts um do outro — é que a minha memória, que sempre operou de maneira peculiar, não faz a menor questão de me permitir encontrar o Ricardo que fui aos 15, aos 7 ou mesmo aos 34, nem mesmo nas anotações que eventualmente fiz em livros. (Que sempre foram poucas, todas a lápis e a grande maioria em livros acadêmicos, quase nada em romances, novelas ou livros de contos.) E o mesmo ocorre com o André — finjo que é esse o seu nome —, um grande amigo que não vejo há anos, que em certa ocasião confidenciou-me relacionar-se de maneira parecida com a sua própria memória…

Se eu pudesse falar por meu amigo, diria que os outros Andrés que ele foi eram diferentes do Bregovic. Não sei se por sorte ou azar, mas eles não tiveram uma Iugoslávia como a dele, um território emocional de fronteiras bem delimitadas como aquele ao qual o compositor diz pertencer — e que ha de ser o verdadeiro, por certo, para além daquele território geográfico ou político que já se desintegrou. E ainda fazendo-me passar pelos Andrés do meu amigo, intuo que essa pertença do Bregovic fosse invejada por eles. (Tenho certeza, porém, de que no pacote da inveja não estavam as faxinas étnicas, os ódios e as matanças que banharam de sangue aquelas terras. Não creio que todos aqueles que o André foi se portassem de maneira tão estrangeira ao outro, tão Meursault.) Aposto cem mil dinares iugoslavos que o que os Andrés queriam era poder dizer: sou daqui, de (pontinhos), completando a frase com um nome próprio qualquer. Mas, do pouco que sei, todos eles eram apátridas, sem o privilégio de algo como esse “lugar afetivo” bregoviciano que lhes fosse próprio. Vinham de lugar algum, de um mundo paralelo àquele em que iam à escola, à natação, ao Drive-in, falando em espanhol, inglês, iídiche ou portunhol. (E, mais tarde, à universidade, aos bares, à praia, ao Circo Voador… em português.) Não se tratava de qualquer tipo de proibição: eles simplesmente nunca foram reconhecidos como sendo de algum lugar!

Depois de um tempo, imagino que já não pensassem mais nisso, salvo quando ouviam os eventuais “De onde você é?”. A resposta dos Andrés que foste devia ser a mesma que me deste quando nos conhecemos: a descrição de um roteiro de viagem, que começava em certo país da América Latina e prosseguia por diversos cantos, até chegar ao lugar onde estivessem aquele que perguntava e “o André da vez”… Suponho que o humor que vi no teu relato já existisse nas conversas dos outros Andrés. Porque não tem cara de característica nova, e você parece ter aprimorado a “técnica”. Pelo menos percebo que deve ter servido (porque sei que hoje serve) de ponte para uma boa conversa, quem sabe uma amizade. (Aconteceu com a gente, não é?) E o bom é também saber que pouco a pouco aquela espécie de interdição, o teu “desterro, sem nunca ter tido terra”, pelo visto deixou de te importar. E diferente dos Andrés de que você por vezes me falava, o teu desejo de uma pátria, nem que fosse afetiva, inscrita no tempo, se esvaziou.

Ah, meu grande amigo André, me desculpe. Do tanto que empatizo com tua história, usei parte dela como subterfúgio para, fora escrever um post… ora, você sabe para quê. E por isso tomei para mim o teu relato, a tua sina sobre esse longo tempo “sem solo” que foi a tua vida. Hoje, por conhecer um pouco o teu jeito de lidar com as mudanças de percurso por que passou, posso comentar com o Milton, e por tabela com o Goran Bregovic, que ambos têm razão, mas não em todos os casos. Porque sei que, no que te diz respeito, a vida não teve recomeços, foi sempre um ininterrupto começo. Daí a inteireza da tua biblioteca, que sempre fez par com a tua vida: puro movimento, constante transformação. É neles que se configura todo o papel impresso e encapado que você leu, assim como ocorre como a tua própria vida. (Resta uma dúvida: com tanto fluxo, a tua biblioteca acumularia poeira? Porque nunca soube de bibliotecas sem pó…)

Sorte minha ser teu amigo, e ainda por cima saber que nossas memórias se parecem. Porque sempre que nós dois olhamos para o passado, buscando eventuais sinais sobre a gente, especialmente nos poucos livros que sobraram em meio às nossas mudanças, ou então quando escrevemos sobre os nossos Andrés e Ricardos, sabemos que, no que a nós se refere, os respectivos fios que atam tudo o (e todos os) que fomos são reinvenção. São fios tão fictícios quanto os livros que deixamos pelo caminho, você nos países em que viveu, e eu nos meus — sem contar aqueles que emprestei e sequer me dei ao trabalho de anotar com quem deixei… Nos angustiamos um pouco com isso, não é? Em compensação, constatamos que há sempre um território novo, com Andrés e Ricardos que nos são apresentados pela primeira vez, que ainda por cima renovam a nossa capacidade de espanto, essa mesma que a idade tende a inibir… Ou em outras palavras: por mais que às vezes eu sinta — não sei você — um torrão de inveja desses territórios razoavelmente preservados (e reconhecidos) que nutrem a memória de pessoas como o Milton — sua biblioteca, no caso dele —, quando olho para trás e tenho a impressão de que olho para a frente, para um desconhecido-às-vezes-com-cara-de-conhecido, vejo que isso tem lá suas vantagens. São impressões estranhas, sem dúvida, por vezes angustiantes e quase sempre solitárias. Mas quando temos um amigo que se percebe parecido conosco e ainda por cima ri disso, elas são uma maravilha!

Abraços, meu caro, saudoso do futuro e das conversas que ainda não tivemos.

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4 respostas para Solilóquio, fingindo conversa

  1. miltonribeiro disse:

    Por vezes, teu André parece Gustav, Gustav Mahler: “Sou três vezes apátrida. Como boêmio na Áustria; como austríaco na Alemanha; como judeu no mundo inteiro. Em toda parte um intruso”.

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    • Ricardo C. disse:

      Há um certo tipo de condição humana que equipara a todos, não é, Milton? Mahler, esse monstro sagrado, e o meu amigo André, sujeito que admiro mas que poucos conhecem…
      Lembrei também do Sándor Márai, atropelado pelas transformações de duas guerras… É mesmo a trajetória de tantos!

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  2. Pax disse:

    “Saudoso
    do futuro
    e das conversas
    que ainda
    não tivemos”

    Esse Ricardo é poético pacas.

    Se não escrever um livro, vai ter um chato na cola pro resto da vida.

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