Estultices, por culpa do calor

Começou com um telefonema. Liguei para uma amiga, não falava com ela há séculos.

— Tudo bem?
Não, papai morreu anteontem… caramba, e você liga assim, do nada!…

Esses eventos ocorrem com relativa freqüência comigo. Nunca mapeei, nunca enumerei, mas o que me chateia um pouco é a falta de aviso. Bem que poderia ser uma sensação de “tenho que falar com fulano, algo me diz que preciso me comunicar com ele…”, com uma música angustiante ao fundo e um olhar um pouco para cima e para a direita, da perspectiva da platéia…

Anteontem, por exemplo, aconteceu como de outras vezes: fui percorrendo a lista de telefones do meu celular, quando lá pelo décimo quinto nome surgiu o dessa amiga, a quem não vejo faz mais de um ano. Bateu saudade, liguei e pimba!, “papai morreu anteontem”.

Ter colocado por aqui um texto sobre um morto atazanando a vida de alguém não sei se conta. Foi há quinze dias, acho que já deve ter expirado o prazo para contar como sincronicidade, precognição ou com o Espírito Santo soprando a cola no meu ouvido. Mas não posso garantir nada; vá saber…

Por outro lado, associando livremente — para deleite dos psicanalistas! —, esse assunto me fez pensar no tema dos anjos da guarda. E por mais que esse tema não faça parte do meu “campo semântico”, antes de dar um bom papel de metáfora para ele, teria que dizer que o meu anjo é bem “século XX”. (Calma, vou explicar!) É que o “sujeito em questão” age como um especialista, feito um médico que só opera mãos, deixando para outro as cirurgias de braços e antebraços — coisa tão criticada na contemporaneidade, que fala em transdisciplinaridade, em retorno ao “homem do Renascimento”, tão bem representado pelo “sabe-tudo” Leonardo da Vinci… Mas como ia dizendo, antes dessa digressão metida a besta, esse meu metafórico anjo da guarda não aparece a qualquer hora, nem em qualquer situaçãozinha. E mais: quando aparece, só o faz “aos 45 do segundo tempo”, quando tudo parece perdido. Não sei, mas imagino que ele seja dado a pretensões pedagógicas, querendo dar lições de alguma espécie para este agnóstico teimoso… Por outro lado (mais um!), de vez em quando ele desanda a parecer um membro da máfia siciliana. Vá lá que um membro meio sentimentalóide, desses que na hora agá preferem dar um sustão na vítima, mas deixando-a viver. Verdade, ele não se contenta com a minha salvação, sempre resolve dar um puxão de orelhas em quem aprontar comigo! (Costumo dizer que nunca preciso me vingar de ninguém, o meu anjo da guarda é o meu “capanga da guarda”!) Certo, talvez não se trate de um anjo da guarda convencional. Mas também, quem manda eu não entender nada de anjos da guarda…

Por último, ainda nessa toada sobre anjos, desconfio que eles sejam meio mexicanos. Explico: no México, vocês sabem bem, celebra-se o dia de finados de um jeito muito especial, numa espécie de mistura entre costumes pré-hispânicos e da tradição católica. Para não me estender no assunto, de maneira bem simplista, diz-se que é bom celebrar os seus mortos com uma festança pelo menos uma vez por ano, que é para que eles não tenham motivos para se queixar de descaso, e assim nos deixem em paz nos 364 dias restantes… Pois tenho para mim que os anjos da guarda, em analogia com o assunto, também gostam de ser celebrados, especialmente no mês que antecede o nosso aniversário. Não é esse período que costumamos chamar de inferno astral, quando tudo dá errado? Se não for por isso, para fazer-nos ver o quão importantes eles são em nossas vidas, só posso pensar numa segunda hipótese: é porque costumam tirar um mês de férias, como qualquer mortal, e a gente que se vire com os empregados que sobraram.

[Em tempo: aqui em casa não sobrou empregado nenhum!]

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8 respostas para Estultices, por culpa do calor

  1. confetti disse:

    talvez por viver em cultura diferente, nao consigo me acostumar com isso de ter “empregados” ! aqui tem femmes de ménage, claro…mas passam algumas vezes pra fazer a limpeza e é so…nao estou criticando viu ricardo, mas sempre me surpreendo com esse aspecto “social” dai…penso na chute de la bastille…kkkfora isso, seu anjo da guarda deve tar te avisando que vc tem mail pra responder….

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  2. Ricardo C. disse:

    Entendo o que vc diz, Confetti. São contrastes grandes, mas as coisas tem melhorado para essa categoria. Os hábitos tem mudado, há cada vez mais femmes de ménage (faxineiras diaristas) como aí, as famílias tb são cada vez menores, as facilidades para o “faça você mesmo” vêm aumentando… Lembrei de um filme do Ken Loach que falava de faxineiras, creio que em Los Angeles. Vc viu?Quanto ao emêiou, já foi devidamente respondido!Beijão

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  3. confetti disse:

    nao lembro desse filme…mas aqui atualmente so se fala em ken loach e de seu novo “it’s a free world”…ainda nao vi, mas sei que se trata de mais uma “cronica social”, a inglaterra como ela é,com seus emigrados miseraveis de paises do lest europeu, seus clandestinos que sonham com o paraiso…deve ser du loach pur sucre !ando sem saco de ver filme com esse tema atualmente;no “cartao postal” que vou te mandar,se trata de cine…:)

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  4. Ricardo C. disse:

    Faz tempo que também ando sem saco para as temáticas do Loach, ou para os antigos Costa-Gravas. Tem horas que cansa, né? São importantes, sem dúvida, mas não penso que seja necessário que olhemos para a miséria humana 24hs p/ dia, 7 dias na semana…

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  5. Nat disse:

    Eu preferia mesmo que os mortos por aqui fossem celebrados com festa… Meu ano novo não foi nada legal. Perdi uma tia na véspera, perdi a entrada de 2008 e perdi minhas férias…Estou cá tentando me virar com os empregados que sobraram…

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  6. Ricardo C. disse:

    Poxa, Nat, que tristeza! Não há muito o que dizer numa hora dessas, menos ainda sobre pessoas que não conhecemos… Te ligo amanhã, combinado?Beijo grande

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  7. Pax disse:

    Ô Nat, meus pêsames aí.

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  8. Nat disse:

    Rapazes, obrigada! Daqui a pouco fica tudo bem.

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