Era um puta mala, inconveniente como poucos. Adorava sacanear todo mundo, com a garantia de que não perdoaria nem a mãe, se o cretino tivesse uma. Fazia isso nas festas, nas reuniões de família, de trabalho. Até num enterro ele aprontou, falando mal do morto, contando seus supostos podres, ele que nunca tinha nem visto o dito cujo na vida. Só não foi expulso porque tinha as turmas do deixa disso e dos que puseram sua inconveniência na conta do luto, esse troço visceral que produz reações pra lá de estranhas nas pessoas.
Mesmo os muito amigos ficavam irritados com seus excessos. Resultado: colecionava desafetos, uma carrada de.
Foi quando morreu. Velado pelos mais próximos, pelos parentes e até pelos amigos irritados, todos fizeram o que se costuma fazer em ocasiões como aquela: lembraram da vida do morto, e nesse caso, também de suas inconveniências, que já não lhes pareceram assim tão pesadas. Até graça viram em uma ou outra — ou uma e outra, passadas algumas horas.
Até que apareceu um dos colecionados desafetos. E mais outro. E sem pensar muito nem combinar nada entre si resolveram destilar sua indignação na frente do caixão e dos presentes, desfiando com raiva e aos berros uma a uma as impertinências, agressões, ofensas, grosserias e outros tantos substantivos femininos e masculinos que faziam parte do rosário de inconveniências do defunto. E os parentes do dito cujo e seus amigos já não mais irritados ficaram perplexos, constrangidos, alguns até conseguindo ser empáticos em relação aos ofendidos recém chegados (mesmo agora ofensores), embora reprovassem sua atitude. Porque aquilo seguia sendo um velório, ora bolas, e mesmo que não existisse alma, espírito ou algo do tipo, era um evento que unia muitos em torno de uma dor comum, ainda que dor particular, contraditória, mistura de tristeza, pena, saudade, desconsolo, raiva e outros tantos substantivos femininos e masculinos que fazem parte do rosário de experiências daqueles e de tantos outros muitos. Ou seja, não era a hora, ou pelo menos não a melhor. Porque fosse o que fosse que os desafetos pretenderam com aquela catarse toda, o que de fato conseguiram foi serem inconvenientes, do mesmo jeito que o morto costumava ser. Vá lá que não tanto como ele, mas aparentados, sem dúvida.
E como é hora de terminar, só mais uma coisa. Se o morto desta historieta vivo fosse, morreria de novo, só que de rir. Provavelmente teria adorado assistir às inconveniências dos outros, nem que fosse pelo menos uma vez.
Olha que coisa bem boa, o texto e vc escrevendo! 🙂
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Um suspiro, Fal, que só de te ver aqui fica mais amplo 😉
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Aoooooooo! Brilhante.
Bateu uma saudade da blogueiragem. Essa internet Facebook e Twitter não tá com nada.
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Era bom, né? As discussões eram mais divertidas. E concordo contigo, essa internet Facebook e Twitter não tá com nada. Aliás, pelo menos do Twitter eu já consegui sair
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