A terceira pessoa da foto à esquerda chama-se dona Zilda, fundadora e coordenadora da Cooperativa dos Catadores do Complexo do Alemão (Coopcal), figura mais conhecida do que muitos possam imaginar. Fotografei na sexta-feira passada, antevéspera de Natal, e vale dizer que ninguém imaginaria dona Zilda aparecendo nela, por um motivo nada prosaico: ela recebera um telefonema no dia anterior marcando encontro em Brasília com a presidenta Dilma, era pegar a passagem e viajar. Mas dona Zilda declinou da honraria e sua razão tampouco foi prosaica: para ela era prioritário que naquela sexta estivesse presente no morro do Adeus participando de um evento com uma dezena de grupos ligados a projetos sociais no Complexo do Alemão. E como sua cooperativa fazia parte da lista…
Difícil não admirar uma atitude dessas, tenho certeza que a Dilma entenderá seus motivos e vai tornar a convidá-la para um cafezinho.
A foto que segue, onde aparece uma parte das mais de duzentas pessoas que se refestelaram com o almoço capitaneado por Júlia, fundadora do FhIO, comandando as participantes do Horizonte Gastronômico — um belíssimo projeto que me deixa com água na boca só de falar nele —, mostra em primeiro plano uma mesa com seis mulheres. Foi na cabeceira à direita que acabei almoçando, ouvindo com atenção algumas histórias contadas por aquelas senhoras, a maioria mais velha do que eu. Foram relatos comoventes, mas que naquele dia tiveram outra característica em comum: eram percebidos como passado, um passado recente, mas que mudou de maneira radical. “Quem diria que um dia eu ia almoçar aqui no Adeus, nesse clima de paz, com as minhas amigas e minha família. Nem em sonho eu imaginei isso!”, foi uma das falas de olhos úmidos que ouvi, seguida de um forte porquê: naquela área, não faz nem cinco anos, funcionavam com perversa regularidade as práticas do microondas e da desova. [Desculpem os que não sabem do que se trata, mas não vou entrar em detalhes. Deem uma “googlada” e inteirem-se, por favor.] Tão (tragicamente) perto e agora tão (esperançosamente) longe, pensei com meus botões, entre os risos francos daquelas mulheres.
E a tarde foi mesmo de alegria, cuja trabalheira de moer os ossos que só fez aumentar a satisfação de todos. Ali estavam as artesãs
do Instituto Musiva, com seu trabalho utilizando materiais recicláveis, levando também alguns dos seus conhecidos mosaicos — há painéis em todas as estações, cada um mais bonito do que o outro, e o do Adeus é o do Noel Rosa, cujas palavras escolhi para intitular este post —; os jovens do grupo Descolando Ideias marcaram presença por lá, levando alunos de seus cursos — na foto à esquerda, alguns dos meninos da oficina de teatro —;
tinha também o pessoal do CEDAPS — voltado para a promoção da saúde e envolvido também na organização de uma rede de coleta de material reciclável envolvendo todo o Complexo do Alemão — e a turma da Cooperativa Eu quero Liberdade, um grupo que admiro absurdamente pelo trabalho que realiza com egressos do sistema penal — um dos seus projetos envolve ex-detentos (e seus familiares) oriundos do Complexo do Alemão,
capacitando-os para atividades ligadas ao beneficiamento do óleo vegetal coletado nas unidades habitacionais construídas pelo PAC, vendendo-o para a refinaria de Manguinhos (produção de biodiesel) e fabricando produtos de limpeza com ele —; não posso esquecer dos meninos do projeto Bom Fruto, futuros agentes de turismo do Complexo capacitados pelo Centro Social Ceinha Rocha — figura singular na comunidade, de fala mansa e doutorado nas manhas de quem sabe fazer deliciosas limonadas com os limões mais azedos de que tenho notícia —, nem tampouco da galera do Verdejar,
uma ONG tremendamente combativa e atuante na área do meio-ambiente e que capacita jovens do Complexo para ações nessa esfera.
Bom, se deixei de citar alguém creditem ao cansaço e à memória meio ruim que eu carrego, não à falta de mérito dos envolvidos. É gente que trabalha muito, com pouca visibilidade e muitas dificuldades, mas que como em toda atividade voltada para o social traz consigo toneladas de vitalidade e disposição para mudar certo tipo de realidade que sequer deveria ter existido, menos ainda se tornado tão ampla no nosso país.
Fato é que a tarde foi avançando, as atividades idem, inclusive o trabalho diário de um sol que também merece descanso, sim senhor, deitando atrás da serra e dando a senha de que é hora do povo acender suas próprias luzes. E como o que é bom dura pouco — para os que estão lendo e os que foram só assistir, porque para os que trabalharam no evento parecia nunca ter fim —, a noite na Estação do Adeus terminou com uma bela apresentação da orquestra sinfônica de Barra Mansa, tendo ao fundo as luzes de uma parte da cidade que nunca esteve muito em evidência, ao menos não nos termos de um Corcovado, do Pão de Açúcar ou das praias da Zona Sul do Rio de Janeiro.
E para terminar, vão desculpando a falta de capricho nas fotos. É que o foco estava no trabalho, não nas paisagens. Mas pelo menos agora dá para ter uma pequena ideia do que ando vivendo lá pelas bandas do Alemão. É pequena mrsmo, não contei da missa um décimo. E como não quero gastar a paciência de vocês e acabar esvaziando um assunto, um lugar e um povo que merecem a mais detida atenção de todos, melhor paro por aqui e mudo um pouco o rumo da prosa nos próximos posts.
Tomara que eu consiga.
httpv://youtu.be/A1-X6HRCZfc
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Lindo Ricardo. Outra hora quero conversar mais detidamente contigo e teu trabalho. Quem sabe não podemos levar para o Alemão algumas ideias de desenvolvimento e empoderamento comunitário de baixíssimo custo e grande impacto?
Os exemplos que citaste são espetaculares, mas temos que ter certeza de que não estão sendo levados somente como “caridade” ou “apaziguamento”. Eles devem estar genuinamente levando ao aprendizado da autonomia para as pessoas afetadas. Do contrário, estarão fazendo uma fração do bem que poderiam estar fazendo.
Um abraço fraterno e um maravilhoso começo de 2012.
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@Rafael Reinehr, sua observação é importantíssima, por isso te digo com alegria: despreocupe-se, todos os projetos têm em comum a busca de autonomia, o desenvolvimento sustentável e conscientização sobre si e os demais. Isso foi condição para que eles fossem aprovados!
Grande abraço e um 2012 supimpa pra vocês quatro
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Como se não bastasse o que você conta suas experiências nessa comunidade, encanta a maneira como você as conta.
Em nossa região há um trabalho intenso de valorização da contação de histórias, arte antiga tão comum nas casas e galpões de fazenda em um passado não tão remoto, mas rareando com o passar do tempo e o esvaziamento da vida no campo. Você é mestre nessa arte!
Já puxei o banquinho…
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Meu caro @Colafina, muito me honra ler tuas palavras, ainda mais de um proseador dos bons como você. Alias, se por um lado me dás esse crédito, nalgumas questões não mereço nenhum: deixar de comentar nas histórias é um pecado que precisa de remissão. Hora dessas eu vou lá, não agora porque assim não vale.
Grande abraço
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Parabéns pela publicação sobre os trabalhos que aqui foram realizados.
Sou Moradora do Complexo do Alemão e Representante da Comunidade, e nunca vi tanto empenho e investimentos voltados para as nossas comunidades.
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Como moradora, sei que você é um bom parâmetro, @Mariluce Souza, e fico contente de participar desse processo junto com tantos outros, mesmo sabendo que a minha contribuição é mínima quando comparo a tudo que tenho recebido em troca.
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