Flexão ré

Ré confessa, essa minha flexão. Mas preciso descascá-la, antes de proferir a sentença. À cebola, então.

Numa das caixas de comentários do antigo Weblog do Pedro Doria, deparei-me com o trecho de um texto do tal do Janer Cristaldo — procurem no Google, não vou pôr o link para ele não — colado por um exímio copiador-colador que costuma freqüentar aquele espaço. O texto do polemista aborda, obviamente, uma polêmica: a entrevista que George Steiner deu, em sua casa, ao suplemento El País Semanal no dia 24 de agosto deste ano [2008].

Devo dizer, cá entre nós, que até aqui a entrevista está deliciosa, perfeita para uma sábado. Bom-humor, erudição sem afetação, reflexões importantes a respeito da “alta cultura” — como esta, sobre Walter Benjamin:

Walter Benjamin dizia que toda grande obra assenta-se sobre uma montanha de desumanidade. É uma verdade incômoda.

E com acréscimos do próprio Steiner:

Sim, lamento a quantidade de livrarias que estão fechando as portas, e de hoje em dia as indústrias da pornografia e das drogas serem bem mais rentáveis. Deveríamos perguntar-nos o seguinte: como é possível que estas indústrias sejam as mais poderosas deste universo ao qual estamos nos referindo? Estamos em perigo, sim, mas também há sinais positivos. Não podemos nunca esquecer que durante o esplendor de Florença, nos tempos de Michelangelo, Da Vinci e dos Medici, por mês muitos eram assassinados debaixo da Ponte Vecchio. Costumamos esquecer-nos de toda a selvageria que existiu nas grandes culturas.

É mesmo sabido que os períodos de grande efervescência cultural, científica e política da história estão cercados de um negrume demasiadamente humano, só para reafirmar a menção a Benjamin. Mas o oposto também se aplica. Mesmo nos períodos mais sombrios da história da humanidade, grandes legados artísticos, intelectuais e afins foram deixados para a posteridade.

Pois é, até aqui não tinha encontrado nada de polêmico em George Steiner. O furdunço que vem sendo objeto de debate, especialmente na Inglaterra, vem mais abaixo, quando fala do panorama atual, e provoca:

É muito fácil sentar aqui, na sala desta casa, e dizer: “O racismo é horrível!” Mas pergunte-me a mesma coisa depois que uma família jamaicana, com seis filhos que escutam reggae e rock and roll o dia inteiro, mudar-se para a casa ao lado. Ou quando meu assessor vier me comunicar que desde que essa família jamaicana se mudou para cá o valor de minha propriedade caiu a pique. Faça a mesma pergunta depois disso! Em todos nós, nos nossos filhos, e para manter a nossa comodidade, a nossa sobrevivência, se escavar um pouco, aparecerão muitas áreas sombrias. Não se esqueça. Olhe para a questão basca. Como me enganei em relação a esse tema! Quando a questão do IRA estava para se resolver, publiquei um artigo dizendo que a mesma coisa aconteceria com o ETA. Mas não, o ETA continua matando.

Pronto, instaurou-se a bronca por todos os lados. Ainda que a entrevista continue — basta ver o link lá em cima — e que muitos outros temas sejam tratados nela, a leitura da maioria terminou na frase “aparecerão muitas áreas sombrias”, com o exemplo dos barulhentos vizinhos jamaicanos, que ainda por cima contribuiriam para desvalorizar o seu imóvel, servindo para tachar o Steiner de velho racista, para dizer o mínimo. E a discussão pelas bandas do Velho Continente não podia deixar de descambar para o espinhoso tema dos imigrantes, linha seguida pelo Cristaldo.

Não me interessa falar especificamente da Europa, nem tentar importar essa discussão para estas bandas. Prefiro dar um tratamento mais particular ao tema, já que antecipei que este post trataria do julgamento de uma reflexão pessoal. Mude para Brasília, 1984, tendo o Beirute como cenário, um conhecido bar e restaurante que durante anos teve a pecha de maldito, antro, mas que acima de tudo sempre foi um espaço amplamente democrático, com a constante presença de jornalistas, gente da classe teatral e toda sorte de figuras da noite. Pense agora num sujeito bêbado, que resolve falar em altos brados para o bar inteiro, despejando palavrões a torto e a direito, além de tentar seduzir sem sucesso todas as mulheres do recinto, de forma reconhecidamente inconveniente. Conseguiu visualizá-lo? Levou em consideração que para alguém ser considerado inconveniente no Beirute, a pessoa precisava realmente se exceder? Esse era o sujeito. E ao ser abordado primeiro pelos garçons, e finalmente pelo próprio dono do bar ele gritou a plenos pulmões algo como “mas é que eu fui torturado pela tortura (sic) militar do Brasil!”, como se pela gravidade do motivo em pauta ele tivesse um crédito infinito que lhe garantisse o direito de desagradar a meio mundo, com todos ainda por cima devendo aceitar o seu comportamento sem ousar reclamar.

Você deve estar pensando o que uma coisa tem a ver com a outra, isso se não pulou diretamente para a constatação de que eu só posso estar começando a dar mostras de uma porção classista, preconceituosa, intolerante ou sei lá mais o que, que o Steiner e eu compartilhamos da mesma atitude fascista, tendo eu seguido os passos de muitos que se diziam à esquerda na juventude e depois de uma certa idade passam a se dizer “amadurecidos”, portanto “de direita”. Se fizer isso, direi que é uma pena, mas não reconheço nem a mim nem ao Steiner nessas imagens — e que me desculpe o Steiner se para formular o meu raciocínio me coloquei no mesmo grupo que ele… Não falo pelo professor, mas, no que me diz respeito, continuo afeito à idéia de sociedades mais justas, mais pluralistas, menos intolerantes e com mais justiça social. Sigo desejoso de uma coexistência que respeite a diversidade, mas que aposte na viabilidade dessa mesma coexistência, isto é, com um acordo mínimo de respeito entre as partes, acordo esse que não me obrigue a aceitar de bom grado que bêbados me importunem, só para continuar no exemplo aí de cima, e nem que com isso eu passe a ser considerado um velho reacionário e intolerante.

Mas afinal de contas, o George Steiner demonstrou ser um preconceituoso racista? Não penso assim. Não depois de ler toda a entrevista, de saber do seu histórico pessoal e de manter suas frases dentro do contexto, e naquele caso, no tema maior da falibilidade humana, com o egoísmo, a auto-referência, a dissensão e tantas outras sendo apontadas como o que são, isto é, características de todos nós, e que mesmo que passemos uma vida inteira defendendo os mais nobres ideais, isso não nos isenta de termos lá as nossas mesquinharias em algum momento dado. E seja o exemplo dele pouco feliz ou original, tirá-lo desse contexto e atribuir ao autor o rótulo de racista é no mínimo interpretar equivocadamente sua entrevista, isso se não se tratar, no fundo, de uma tremenda má-fé em relação a ele. Entendamos, porém, uma coisa. O que acabou de ser dito neste parágrafo pretende em parte ser uma explicação, em parte uma constatação. Mas nunca, em tempo algum, uma justificativa, o que seria algo totalmente diferente.

Sendo assim, declaro agora, em alto e bom som, que não fico nem um pouco satisfeito dos vizinhos do prédio em frente ao meu fazerem festas infantis com música estridente e “animadores” urrando em potentes microfones; que a despeito do funk carioca ser objeto de aclamados estudos antropológicos, e de ser também uma via de expressão de alguns segmentos da sociedade, considero-o melodicamente indigente e de letras toscas demais; que apesar da vileza do desemprego e das dificuldades de inserção em um mercado de trabalho cada vez mais excludente, não fico nem um pouco satisfeito quando o sujeito que se diz “guardador de carros” da rua próxima ao meu trabalho se comporta como dono dela, ainda por cima destratando as pessoas que passam por lá e ameaçando riscar a lataria de seus carros se não lhe pagarem no mínimo quatro reais a cada hora. Por último, o pecado maior: mesmo sem desejar fazê-lo, sei que o meu discurso pode muito bem ser considerado reacionário, de direita e intolerante por alguns, ainda que moderado demais para aqueles verdadeiramente reacionários, de direita e intolerantes. Paciência, isso está além do meu controle.

Agora sim, descascada a minha cebola, estou disposto a pagar o preço por esta pequena exposição pública. Uns quatro reais, mas por quatro horas de estacionamento, no mínimo.

[Mais um texto velho, também de setembro de 2008. Falta do que dizer dá nisso.]

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23 respostas para Flexão ré

  1. Adriano disse:

    «Agora sim, descascada a minha cebola, estou disposto a pagar o preço por esta pequena exposição pública.»

    Hm. A tolerância da esquerda dá medo…

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  2. Pax disse:

    Tudo isso pra reclamar do preço do guardador de carros?

    Bem, chame a milícia !

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  3. funkeira* disse:

    ich….apareceram mesmo muitas areas sombrias na minha regiao neuronal !
    ta bom assim rc ?))

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  4. Pax disse:

    Essa funkeira… **

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  5. Cabral, foi muito bom ler este texto seu, neste momento em que estou apenas conhecendo-te. Como indicação do Diego, certamente és alguém especial, mas consegui comprovar, pelo menos inicialmente, um pouco da virtude que se encerra em você.

    Aproveito para informar que te incluí na lista de discussão dos blogueiros. Logo seu blog também estará na capa do OPS!. Estou com dificuldades de acesso agora à noite mas já está apontado aqui como prioridade. Abraço fraterno.

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  6. Camila disse:

    Os tais recônditos escuros de minhalma estão em efervescência, de tanta inveja do seu texto. O parágrafo que reúne festa infantil, funk carioca e guardador de carros é um primor. Beijos!

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  7. anrafel disse:

    De fato, devemos ser prudentes e não classificar Steiner como racista. A partir de um exemplo específico, ele alerta sobre contradições íntimas acirradas por um episódio banal, ‘apolítico’. A segurança demonstrada em debates sócio-políticos pode ser comprometida por algo que desperte o inevitável lado egoísta de cada um, acionando reações anteriormente impensáveis a partir de uma análise ideológica.

    No caso do, digamos, torturado exibicionista, a situação é conhecida: o sujeito argumentar em favor de um tratamento diferenciado atitudes tomadas (ou perseguições sofridas) num contexto político, Essas atitudes deveriam somar no engradecimento pessoal e não no amesquinhamento.

    Cito dois exemplos: Plínio Marcos achava que, em sua atuação política não tinha feito nada de extraordinário, foi apenas a sua obrigação consciente que cumpriu.

    O outro é Lobão. Volta e meia aparece alegando sua briga e rompimento com o esquema das gravadoras e a sua idéia de numeração dos discos. Virou uma espécie de marketing recorrente. Geralmente, vem CD ou DVD logo em seguida.

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  8. s leo disse:

    Choque cultural, caro Cabral, era disso que o Steiner estava falando e não era sobre a galeria que foi vandalizada por um celerado nesta semana, lá em São Paulo. Há pouco tempo, mudou-se para o terreno ao lado de minha casa um casal; ele psiquiatra, ela dentista. E contrataram um caseiro, do ceará, que instalaram num cômodo encostado à minha cerca viva. Aos fins de semana, o sujeito enchia a cara, e ligava o som, com forrós e axés de duplo sentido (pensando bem, de sentido único, entre o escatológico e o pornográfico).

    Conversei com o sujeito, ele abaixou o som, que ainda incomodava, mas me fazia refletir sobre a necessidade de convivência com os desiguais. Mas bastava vir o fim de semana, e a cachaça, para que ele esquecesse nosso tato e as alusões aos gl[úteos femininos e às sassaricações do povo em festa me invadissem a sala, encobrindo o jazz que eu costumava ouvir, impedindo minha soneca pós-almoço.

    Dia desses, brigou com a mulher, que o largou. Encheu a cara, botou o som nas alturas, e se despediu, voltou para o Ceará. Coincidência, passei minha infância no Ceará. E me sinto em dívida com a mulher dele até hoje. Paz abençoada.

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  9. Ricardo C. disse:

    Caro Sérgio, é uma pena que a leitura que muitos andam fazendo sobre a entrevista do Steiner seja tão enviezada, não? E sobre a sua própria experiência, me fez lembrar de quando morei por essas bandas planaltinas — meu último endereço, de onde saí em 1984, foi na MSPW 16 —, época em que tive a fortuna de não contar com vizinhos nos terrenos à frente, atrás e aos lados — lembrando como eram enormes esses terrenos, 20 mil metros quadrados… Dava para dissertar tranqüilamente sobre choques culturais ao som de um jazz de primeira, hehehe!
    E muito me honra a sua visita, quero deixar registrado

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  10. Olga disse:

    Caramba, Ricardo, mudanças radicais!!!
    Eu mal tenho entrado nos blogs queridos. Muito trabalho mesmo e nenhum tempo quase pra Web.
    Adorei o new look. Vou alterar o endereço nos meus links.
    Beijo

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  11. Diego Viana disse:

    Cabra,
    Não vou comentar sobre o texto porque preciso de mais calma pra lê-lo (ou seja, lê-lo durante o dia). Mas quero dar uma dica: entra no Feedburner e manda mudar o endereço de onde saem os seus feeds. Assim, quem recebia o antigo passa a receber o novo. Foi o que eu fiz com o meu, por sinal!
    Na próxima, comento o texto.

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  12. SLeo disse:

    Há! Sabia que isso estava me cheirando a dejà lu! Que vergonha, hein, texto velho! Mas veio em boa hora, acabo de ler um livro maravilhoso do Steiner, o “Nenhuma Paixão desperdiçada”, e tendo a concordar com qualquer um que concorde com ele.

    Por que só a direita pode ser políticamente incorreta? Vamos à luta, camarada. O pacto social(socialista) exigiria headphone pros jamaicanos. Eu que já tive um caseiro amante de funkpornô ao lado de casa estou com o Steiner e não abro mão.

    Mas o interessante do texto do Steiner, e que dá a atualidade de seu post não é a Jamaica, mas a Bolívia. Troque IRA por Farc e voltamos a conversar.

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    • Ricardo C. disse:

      Pois é, Sergio, a tua resposta com a proposta de troca do IRA pelas Farc bolivianas colombianas me fez pensar no seguinte:

      1) tem certas ideias que a gente coloca num texto que no fundo (e no raso) parecem meio atemporais. Claro, definitivamente não se trata de ideias originais, mas de constatações que todo ser humano faz em algum momento de sua vida, daí a sua atemporalidade. Digamos que sejam ideias que pulam de cérebro em cérebro… ou

      2) tem certas ideias que ficam grudadas na gente, por mais que a gente supostamente cresça e amadureça. Muitas vezes nem ideias são, mas apenas marcas, imagens, os Rosebud da vida de cada um.

      Ah, não precisa necessariamente escolher uma das duas. Elas podem coexistir num mesmo sujeito, nem que esse sujeito seja só eu.

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  13. SLeo disse:

    Ops, dei uma de Ancelmo. Onde se lê Bolívia, leia-se Colômbia. Xô Zéserra, sai desse corpo que não te pertence!!!!!

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  14. Pingback: Ricardo C.

  15. Anrafel disse:

    Fui lendo, lendo e a lembrança tomando corpo. “Hum, conheço este post de algum lugar (daqui mesmo)… parece que eu comentei nele… e comentei mesmo!”

    O copiador-colador continua o mesmo lá no Pax.

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