A culpa é de Fidel do B

Sobre a minha relação com os anos de chumbo, umas poucas linhas da parte que (ainda) me toca.

Nasci no exato ano do golpe — dois meses depois, para ser mais preciso. E bem cedo saí do país, só voltando com Geisel na “presidência”.

Cedo, sim, e criança demais para entender boa parte das discussões que aconteciam lá em casa, regadas a jazz, bossa nova e eventuais (e, na época, soporíferos) Mercedes Sosa, Atahualpa Yupanqui e Violeta Parra, saídos dos LP’s na vitrola ou do Grundig (que não lembro bem, mas acredito que estivesse) ao seu lado. Sem falar das estranhas siglas relacionadas ao trabalho do meu sempre engravatado pai, ou de imaginar que ouvia seus dentes rangendo a cada vez que alguém lembrava do esvaziamento de uma tal de Sudene onde ele também trabalhara antes de sair do país.

Curioso. Mal lembro da palavra “militar” sendo dita lá em casa, mesmo sabendo que um dos meus tios era ou tinha sido coronel e que o presidente do país em que estávamos, cuja cara séria me desagradava um pouco, tinha a patente de general. E por falar em palavras pouco ditas, só mais tarde, já maiorzinho, fui saber que um ou outro dos que nos visitavam era exilado, outro termo que eu não sabia muito bem o que queria dizer, mas que devia ser muito ruim, já que parecia tabu para os mais velhos, pois raramente o pronunciavam.

Agora mesmo emergiu, suspeito que do hipocampo, uma lembrança muito antiga, ainda naquele país. Almoço na casa dos Coutinho e tenho quase certeza que o cardápio era feijoada, coisa rara por aquelas longitudes. Vários brasileiros torcendo como loucos pela fantástica seleção de 1970, o teor alcoólico certamente nas alturas. E mais tarde, a imagem de alguns desses mesmos adultos hora melancólicos, hora (contidamente) coléricos, com o som da palavra “Brasil” quase sempre no meio das ininteligíveis frases…

E três anos depois, na televisão, os aviões bombardeando o Palacio de la Moneda, e o meu espanto tornado tristeza, não tão profunda quanto a dos meus pais e seus amigos, boa parte de uma geração de brasileiros profundamente vinculados às ideias de uma América Latina menos desigual, mais justa e mais independente das potências hegemônicas de então, e que viram na queda do governo chileno a confirmação de como tudo ruíra. O negro, agora, seria não apenas a cor do luto pelos mortos, mas também pelos futuros anos de exceção que encobririam quase todo o continente.

Muitas outras histórias ocorreram depois daquelas imagens, algumas delas já no Brasil, com o AI-5 ainda em vigor. Mas por hoje chega, já abusei das reminiscências que meu hipocampo “liberou para a leitura”. O que posso é lançar uma pequena ponte entre mim e Ana, personagem central de “A culpa é de Fidel”.

Não me lembro de ter dado a mão ao meu pai como Ana fez com o dela assim que o viu desolado, logo depois da notícia da morte de Salvador Allende. Mas assim que a vi ao lado do próprio pai, entre o um minuto e trinta e oito e o um minuto e quarenta e um desse vídeo aí de cima, reconheci os sentimentos que ali havia. Todos. E garanto que Fidel não tinha culpa nenhuma de nada daquilo.

[De 31 de março do ano passado. De novo por aqui, porque ando latino-americano como o quê.]

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16 respostas para A culpa é de Fidel do B

  1. Luiz disse:

    Ricardo,

    Os insondáveis mecanismos da memória são realmente fantásticos…

    Sou apenas meses mais velho que você, e cresci em um ambiente em que não se falava do assunto, pelo menos perto das crianças. A primeira lembrança clara que tenho relacionada ao tema é de quando o ditador nº2 adoeceu e os três pat.., digo , ministros assumiram. Não sabia bem o que estava acontecendo, mas a sensação de estranhamento ficou.

    Meses depois, lembro de ter sido levado por parentes para uma escola (depois soube que era uma faculdade) para esperar que uma prima assistisse às aulas e depois “escoltá-la” para casa. O motivo: queriam evitar que ela tivesse contato com um certo professor, um cara ‘perigoso”… Sabe quem era o cara? Aquele que anos depois me emprestou o livro do Dostoievski que veio com um “encarte” diferenciado”… (Só pra nós: o cara hoje é deputado federal…).

    Do Allende já falamos… Dali em diante é que as coisas começaram a ficar mais claras pra mim…

    E como eu disse lá no PD:

    NUNCA MAIS !!!

    Ponto.

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    • Ricardo C. disse:

      @Luiz, Nunca Mais mil vezes!!!

      E vc é um manancial de boas histórias, rapaz, então encilhe seu hipocampo e libere essas tramas à galope!

      Abração!

      P.S.1. Fico pensando em como seria uma mesa de bar contigo e com o Rafael Galvão, só para ficarmos com dois dos bons domiciliados da Bahia para cima… Eu me divertiria muito!

      P.S.2. Vc leu uma história que contei sobre meu avô e Lampião? Se não leu, e esta aqui: http://agora.opsblog.org/2007/11/lampiao-e-correinha/

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      • Luiz disse:

        @Ricardo C.,

        Cara, se eu resolver (e tiver tempo de) desenterrar as poucas histórias que vi ou ouvi, periga não encher meia lauda…

        Um encontro nosso com o Rafael seria uma ameça de falta de voz (por excesso de uso) misturada com uma quase coma alcoólica…

        E a história do seu avô com o Virgulino é genial… Tem tudo a ver com algumas que li ou ouvi sobre ele. Aliás, nos comentários lá, a conterrânea Alba cita um livro do Leonardo Mota sobre Lampião, o qual também li, muito tempo atrás. Como diria aquele outro, se espremesse saia sangue…

        Abração.

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  2. serbon disse:

    o mais esquisito é ler gente nos comentarios destes blogs justificando e até defendendo a ‘ditabranda’. imagina como deve estar o blog do Reinaldo Aze(ve)do…

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    • Ricardo C. disse:

      @serbon, até que o clima no blog do Pedro Doria não esquentou tanto desta vez. E o que me espanta mesmo é ver gente nova, com menos de 30 anos, com esse discurso revisionista que não passa de um fascismo disfarçado… Mais do que engulhos — que um sal de frutas ameniza —, me preocupa, por conta dos resultados que já vemos nos filhos da geração nascida nos 60s, uma geração — que é a minha! — alienada demais para o meu gosto. E depois ainda dizem que a ditadura não foi eficaz… Porra, podíamos ser uma sociedade mais politizada, equitativa e justa, e não esse poço de desigualdade! Quanto atraso, não?, e logo na nossa vez!

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  3. Darwinista disse:

    Nasci em 1971. Minhas primeiras lembranças mais nítidas de ambiente político são as famigeradas “A Semana do Presidente” do Silvio Santos. Meu padrasto via o Figueiredo e resmungava, chamando-o de ladrão e coisas do tipo.

    Minhas marcas maiores foram provocadas pelo processo de transição. A eleição de Tancredo, sua morte, a assembléia constituinte. Esses elementos ajudaram a moldar minha personalidade política e meu interesse pelo passado recente. Por minha conta entendi e reneguei o passado sombrio e fardado.

    É possível, mesmo àqueles que não vivenciaram mais intensamente esse período, tomar uma posição de Nunca Mais. Basta se informar e ter um pouco de amor às liberdades individuais.

    Hoje estou cansado desse revisionismo que, como muito bem observou o Ricardo, é fascismo disfarçado. E o episódio “Ditabranda” foi a gota d’água. Cansei de debater com quem tem pensamento tão tacanho. Por isso me abstive de participar do post do Doria, e assim farei de agora em diante.

    Grande texto, Ricardo. O melhor que li por conta da ocasião.

    Abração.

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    • Ricardo C. disse:

      Darw, grande comentário — e não “comentário grande” —, e entendo perfeitamente o teu cansaço. O debate é necessário, desde que com um mínimo de disponibilidade das partes para escutar o que o outro tem a dizer e ao menos refletir sobre isso, mesmo que no final não se mude um milímetro a posição que se tem. Mas sem essa disponibilidade, nada feito.

      E elogio teu tem peso 2, viu?

      Abraço

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  4. André Egg disse:

    Nasci 60 dias depois do bombardeio a Allende. Minha família nunca teve niguém de esquerda (exceto algum entusiasmo getulhisa na geração de meu avô, que não excluía, por exemplo, simpatizar ao mesmo tempo com Hitler).

    Quando fui para o segundo grau lembro de um padre que deu aulas de “Educação Moral e Cívica”, que o CEFET-PR teimava em travestir com o conteúdo de filosofia, tentando enfiar na cabeça daqueles guris de 14 anos que a ditadura tinha sido uma merda. Estávamos acostumados a achar que tinha sido tão bom aquele tempo, pois nossos pais talvez comparassem o milagre econômico com a hiper-inflação que marcou a “redemocratização”.

    Naquele mesmo ano, todos nos empolgamos com a primeira eleição para presidente. Foi impressionante ver aqueles jovens todos dividindo-se entre votar em Lula ou Brizola. Numa eleição simulada no colégio Collor teve 1% dos votos. E olha que na eleição de verdade ele ganhou disparado em Curitiba.

    Tudo tem remédio. Viva a escola, viva os professores honestos. Ainda vamos acabar com esse analfabetismo funcional que a grande mídia pensa que nunca vai acabar.

    Este post aqui foi deveras emocionante. Mesmo para quem não tem lembranças. Só soube das coisas pelos livros de história. E ainda teve que ficar brigando em casa com os velhos reaças…

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    • Ricardo C. disse:

      André, quando escrevi o post, não imaginava que entre os comentários alguém fosse reconstituir aspectos de sua história pessoal. Mas vc e o Darwinista não só o fizeram, como o que disseram também me tocou.

      Sabe, é possível entremear debates políticos com questões afetivas como as que nós 3 expusemos por aqui, sem deixarmos a profundidade e a consistência de lado. Creio que amplia a perspectiva com que analisamos os fatos e a nós mesmos, e da maneira que o fizemos, o resultado me deixou por demais feliz.

      Grande abraço!

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  5. Pingback: Ricardo C.

  6. gugaalayon disse:

    putz, gde poste fundamental! (fora os comentários)
    Beleza

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    • Ricardo C. disse:

      Rapaz, muito me honra essa tua avaliação, ainda mais porque é das coisas mais confessionais que já publiquei no blog, o risco de ser fortemente piegas é por um fio…

      Abração, bom te ler por aqui

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  7. Anrafel disse:

    Qui mané piegas, que nada! Revisitar estes campos da memória é fundamental. Ocorreu exatamente como estamos lembrando? Como saber?

    Por que recordamos com tanta intensidade momentos, conjunturas e situações nos quais não tínhamos, pela pouca ou pouquíssima idade, condições de vivê-los com alguma plenitude?

    Assisti há poucos dias o documentário “Uma Noite em 67”, sobre a final do festival de música daquele ano. Surpreendi-me torcendo para “Domingo no Parque”, que eu considero a melhor de todas as chamadas músicas daqueles festivais.

    E é, tem sido assim. A efervescência cultural e política do anos 60, o breu dos primeiros anos da ditadura militar brasileira, as mãos dadas com a utopia e o dream is over evocam emoções fortes na criança e no pré-adolescente, mesmo tendo este cara vivido à época num ânus de mundo do interior da Bahia.

    (Sobre a seleção de 70, lembro de Gabeira, em “O que é isso, companheiro”, narrando a decisão tomada pelos recém-banidos do seu grupo de torcer contra o time de Pelé. A ditadura militar tentaria legitimar-se com a vitória na Copa e outros argumentos correntes. A granítica decisão foi seguida, mas sucumbiu naquele gol extraordinário de cabeça do Negão contra a Itália. Numa fração de segundo, estava todo mundo pulando, gritando, se abraçando).

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    • Ricardo C. disse:

      Que comentário bacana, Anrafel, mais ainda vindo de um contemporâneo. E o curioso é que recentemente vi menção a essa passagem que você descreveu, só não lembrava de ser associada ao livro do Gabeira. Aliás, que pena pela guinada política dele, anda uma tia velha neo-udenista de dar tristeza. Quem diria que votei nele para prefeito nas eleições passadas, mesmo com todos os senões que carreguei por conta de suas alianças políticas (que por sinal só fizeram piorar…).

      Grande abraço e que bom guardar esses registros de gente que levo em tanta conta.

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      • Luiz disse:

        Ricardo,

        Estou errado ou foi o que Lacerda fez uma “transfiguração” política similar?

        Seria a água da cidade?

        🙂

        Abração.

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      • Ricardo C. disse:

        É verdade, Luiz, tem um quê de Lacerda. Mas não creio que seja culpa da água, caso contrário eu já estaria indo para um caminho parecido, coisa que não vejo acontecer enquanto eu estiver com as minhas faculdades mentais razoavelmente preservadas 😉

        Abração

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