Conheço um sujeito que anda contente. Eu estranhei, então ele tratou de me explicar, bem do comecinho.
Em castelhano, que sem saber por que sempre preferiu chamar de espanhol, escreveu seus primeiros rascunhos, tatibitateou declarações de amor, iniciou-se na arte de jogar conversa fora e contou suas primeiras piadas ruins, muito ruins. Não era a língua de casa, pelo menos não a oficial. Naqueles tempos estrangeiros, pai e mãe brasileiros questão faziam de plantar, em bom português, alguns dos pés-de-família que aprendeu a cultivar à distância, suas memórias emprestadas, como gosta de chamar. Só que o português de então vivia sendo “corrompido”, aspas com capricho, pelo espanhol de Zoila, zê com som de esse, e de Avelina, as empregadas responsáveis por parte das histórias nada brasileiras que enformaram o portunhol de raiz que ele falava logo que voltou ao Brasil, crente que de português se tratava. (Não sei se deu para entender que ele nasceu no Brasil, saiu daqui vestindo fraldas e voltou ainda moço. Se o subentendido estava mais do que entendido, peço que desculpem a explicação da piada.)
Resumindo: brasileiro, sem dúvida, e latino-americano, óbvio. Mas garantiu que o truísmo não era tão truísta assim. Explicou que sua latino-americanice e a de um monte de conterrâneos ao redor não se pareciam, e que nem precisava ir muito longe para comprová-lo. Bastava falar com os vizinhos do prédio, as colegas do trabalho, o tradutor de Sabrina e Júlia que virou um bom amigo ou boa parte dos primos espalhados pelo país. Disse que, ao contrário do norte-americano médio, todos eles sabiam de cor quais são os países hermanos mais próximos, e que muitos até dirão o nome de no mínimo um dos seus presidentes, nem que para falar mal. E é aí que as diferenças ficavam mais nítidas, ressaltou. Aliás, contou uma historinha besta, já que vive com preguiça de explicar suas teses, ou pelo menos essa é a desculpa que adora dar. Tem a ver com um grande amigo carioca seu, por sinal mais da gema do que muitos, nascido num Panamá que é só mais uma das tantas nacionalidades que carrega, com destaque para duas: rubro-negra e copacabanense (da Gastão). Disse que faz tempo não se veem, mas lembrou, abrindo um saudoso sorriso, como se divertiam com pouquíssima coisa. Uma era começar, do nada, um diálogo em portunhol clássico e, de uma hora para outra, mudar para o espanguês castiço. Fiz cara de não entendi, então falou que era simples: primeiro hablávamos em espaniól, cômo buêna parte de lôs brazilênhos acreditam que fassem, duêla a quiem duêla escutchar. Despuês dávamos una reviravuêlta e entáo falábamus emm bómm portoguéss, tal y qual falan tudus us nóssus ermáos dos paísses becínus, e caíamos na gargalhada. Tá na cara que só eles riam, ninguém acharia a menor graça nessa bobagem.
Aquela lembrança totalmente idiossincrática meio que destampou a panela de onde ele tirou outras tantas, passando a falar empolgado do Chavo del Ocho e del Chapulín Colorado, de Mercedes Sosa, Violeta Parra, Tania Libertad e Atahualpa Yupanqui, do Silvio Rodríguez e do Pablo Milanés, de Charly García e Fito Páez, do Botellita de Jerez, emocionando-se um pouco mais ao lembrar dos velhos discos da María Elena Walsh e desatando a cantar Me dijeron que en el Reino del Revés nada el pájaro y vuela el pez e eu disse tá bom, entendi, não preciso da trilha sonora inteira pra ver que tipo de latino-americano você é. Diga logo uma coisa, perguntei, o que tudo isso tem a ver com o seu contentamento? Desta vez resolveu explicar. Disse que nos últimos tempos, um período que ele não sabia precisar direito, mas ia para mais de dois ou três anos, começou a perceber um contingente maior de pessoas que não só sabiam bem mais do que de costume a respeito das coisas que aconteciam nos países vizinhos, como também se interessavam genuinamente por esses assuntos. Via reflexos disso na música, por exemplo, com cada vez mais artistas argentinos, mexicanos, cubanos e de tantos outros cantos vindo ao Brasil, gente não propriamente ligada ao folclore mais conhecido (e às vezes caricato) de seus respectivos países. Na literatura, no cinema, nas discussões políticas, em todo canto ele notava que as vozes em português pareciam finalmente ir muito além dos clichês chicanos, criollos ou cucarachos. Sua crença, até então tristemente inabalável, de que sempre viveríamos de costas para os países de língua espanhola, começava a claudicar.
Mas não só isso. Ele falou entusiasmado sobre diversos acontecimentos recentes, uma verdadeira inflexão em relação às experiências que tinha sobre o que ele chamava de um jeito entre o insular e o imperialista do Brasil em relação ao resto da América Latina, um imperialismo que só não se mostrara ultra-evidente por conta da necessidade do país de lidar com seus inúmeros e abissais problemas internos. Foram várias as referências que ele mencionou, mas lembro melhor de algumas: a importante participação brasileira na MINUSTAH (Missão das Nações Unidas para a estabilização no Haiti), assim como a atuação do país no recente golpe em Honduras, que mesmo não tendo o desfecho que ele gostaria, foi bem mais ativa do que de costume. Também viu com olhos compreensivos a reação brasileira frente aos reclamos da Bolívia quanto à exploração de suas reservas de gás natural, do mesmo modo que do Paraguai a respeito do valor recebido pela energia de Itaipu. Esperava, é claro, que boa parte das reações pátrias fossem negativas, críticas de um Brasil que se mostrava fraco e blá-blá-blá, e de fato viu isso inundar a mídia. Mas, para sua surpresa, muitas vozes destoaram desse discurso habitual e entenderam de outra maneira o papel do país em relação aos seus parceiros mais pobres, que a necessidade de fortalecê-los era a atitude muito mais do que acertada. E vi sua emoção pela manifestação de júbilo de incontáveis jovens brasileiros por conta da aprovação, pelo Senado argentino, do matrimônio civil de casais homossexuais, com a torcida para que esse exemplo seja seguido por aqui de uma vez.
Para coroar, falou da análise do Samuel Pinheiro Guimarães sobre o futuro da América Latina — que tomou conhecimento por um dileto vizinho deste blog, o jornalista Marco Weissheimer, do RS Urgente— e ainda arrematou com a sua empolgação mais recente: a notícia de que agora em agosto começará a funcionar a Unila, “a primeira universidade criada para impulsar e consolidar os laços entre as nações da América latina”, segundo o jornalista Javier Lorca escreveu para o Página|12, um avanço concretizado sobretudo graças ao empenho do governo Lula. Tudo bem, vamos ver os percalços dessa iniciativa, talvez no começo não funcione direito, mas duvido que seja mais difícil do que aconteceu coma União Europeia, ponderou com animação.
Diante de tudo isso, entendi muito bem todo o seu contentamento. Ele pôde ver ainda em vida como o panorama finalmente mudou, de que ao falar em América Latina há algo bem mais compartilhado, muito mais amplo, vivo e coletivo do que as suas lembranças pessoais ou as brincadeiras com seu amigo carioca-panamenho. Outras vozes, com histórias muito diferentes das dele, não só veem as coisas de maneira semelhante, mas também fazem por onde para as nossas latino-americanices falarem bem mais do que portunhol ou espanguês.
E cá entre nós, eu também fiquei contente.
[Na blogosfera mais próxima há um monte de gente tão ou mais latino-americana do que esse sujeito que eu conheço. O Maurício Santoro o Sergio Leo, o Idelber Avelar (infelizmente hibernando), o Alex Castro são só alguns dos mais bacanas que me ocorrem.]
Um P.S. tardio: o sujeito que conheço esqueceu de dizer que ele sabe muito bem da existência de um Brasil há muito tempo latino-americano. Dele fazem parte os estados do sul do país, além de todas as cidades de fronteira. É um Brasil que grande parte do centro, do norte, do sudeste e do nordeste desconhece. Faz tempo esse Brasil sabe o que é bom.
Pingback: Ricardo C.
Tá feliz, hein, cabra? 🙂
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Com tudo o que o cara que eu conheço me disse, tenho mais é que ficar feliz, né, Rafael? 😉
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Lá por noventa e poucos eu vibrava com uma música ganhadora da Tafona da Canção Nativa e que ouvia na Radio Nativa de Sombrio-SC.
Latinamente Iguais, chama-se a dita…e o Torero que nem sonhava em Torero ser, cantava aos brados mais ou menos assim ‘…los latinamente iguais, somos todos portunhóis, na paixão que nos emana, e urbanos ou rurais, todos nós somos tribais, nesta aldeia americana.’
Gracias Ricardo, baita texto.
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Em SC tive noção dessa relação singular do Sul com a América hispana, Torero, e isso me chamou muito a atenção. Saber que o resto do país pouco a pouco começa a seguir-lhe os passos só me enche de alegria.
Que bom que gostou do texto, achei que não fosse ecoar em canto algum e que essa visão fosse meio delirante da minha parte, digo, da parte do sujeito que eu conheço 😉
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Puis, Seu Ricardo… como disse o Torero, baita texto, mesmo. Na qualidade e na quantidade de informações.
À medida que lia, confesso, sentia que tinha alguma coisa que faltava ser dita, ou precisava dizer de outro jeito, sei lá, e fui ficando realmente incomodado… até chegar ao seu P.S. tardio!! Ele traduz em poucas palavras uma realidade de longa data de miscigenação de hábitos e cultura entre os estados do sul e nossos hermanos castelhanos!
Alguns versos de Mário Eleú Silva dá uma pequena mostra desta proximidade:
“Orelhano, de marca e sinal
Fulano de tal, de charlas campeiras
Mesclando fronteiras, retrata na estampa
Rigores do pampa e serenas maneiras
Orelhano, brasileiro, argentino
Castelhano, campesino, gaúcho de nascimento
São tranças de um mesmo tempo, sustentando um ideal
Sem sentir a marca quente, nem o peso do buçal
Orelhano, ao paisano de tua estampa
Não se pede passaporte, nestes caminhos do pampa
Orelhano, ao paisano de tua estampa
Não se pede passaporte, nestes caminhos do pampa”
Grande abraço!
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Corrigindo-me: “… DÃO uma pequena mostra…”
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O pê esse já estava em minha cabeça, Colafina, e deveria ter vindo no meio do texto. Com a conversa das lembranças e das empolgações com as notícias recentes acabei me esquecendo de incluir esse ponto importantíssimo.
Além dessa viagem a Floripa no início dos 80, no final dessa mesma década fui a B. Aires saindo de Porto Alegre. E antes de atravessar a fronteira vi muito do que o sujeito que conheço relata, como por exemplo traduções de poetas e escritores argentinos e uruguaios por parte de editoras locais, muito antes das editoras de SP e Rio pensarem em publicá-los.
A cultura de que me deste mostra com esses versos só fazem confirmar o que há tempos funciona, é rico e só agora o resto do Brasil começa a tomar ciência.
Obrigado pelas palavras, Colafina. 😀
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Reconheço que ao correr do texto a impressão que teve o Cola também me alcançou. Esperava porém, da mesma forma, algo como o teu P.S., acho que já estou meio vaqueano no teu estilo de escrita.
Agora, ao ler o Lageano Casca-Grossa, que como eu, antes mesmo de findar o texto levantava uma pestana e dizia com seus botões ‘mais um carioca que tece considerações sem se lembrar que existe Brasil de Tordesilhas pra baixo?’, indago se não é sintomática tal conjunção de pensamento. Um sempre estar na defensiva, já que ninguém se lembra ou entende nós do sul. Carrego um pouco nas tintas, já que a hegemonia do sudeste nos noticiários da TV aberta, em novelas e esporte, e que atinge o país inteiro em influência, vem diminuindo com o tempo sim.
🙂
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Faz todo sentido, meu caro, mas não apenas pela questão da antiga hegemonia do Sudeste na produção televisiva e no noticiário. Acrescento:
As duas línguas, próximas porém distantes
+
A produção cultural local, tb muito rica
+
Muitos Brasis dentro do Brasil, que pouco sabem de si
+
Um sentimento como que de bastar-se por parte de muitos
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Ricardo, depois das manifestações dos meus vizinhos aí em cima, não tenho muito a acrescentar. Só que é um baita texto. Compartilho de sua felicidade.
Muito em breve irei a Buenos Aires de carro, saindo aqui de Joinville, parando em Porto Alegre, Praia do Cassino, Punta, Montevideu… ah, quando eu voltar eu conto o roteiro inteiro e posto as fotos 🙂
Abraço,
André
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Meu amigo, será sem dúvida uma bela viagem e quero mais é ver as belas fotos do passeio bilíngue! 😀
Abraços e obrigado pelo vídeo do Orelhano
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Aliás, quer uma trilha sonora para o seu post?
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Para mim, ser latino-americano é, além de uma constatação cultural, uma posição política clara e indeclinável.
Há mais de três décadas iniciei trajetos por alguns países de nuestra América, que sempre me fascinam e retribuem com surpresas e hospitalidade. Ainda restam muitas trilhas a percorrer e espero viver o suficiente para retomar as investidas.
Caminhar pelas enormes ruas de Buenos Aires, olhar o Pacífico desde as barrancas de Miraflores, admirar o Titicaca perto de Puno, despencar na cordilheira entre os picos nevados são experiências inesquecíveis, estão muito próximas e promovem a sensação de ser e estar em casa.
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nsca, felizmente essa postura política vem se estendendo. Mas antigamente ela era bem restrita, mais ainda em relação aos de nossa geração (final dos 50 a final dos 60), que viveram praticamente todos os seus anos de formação sob a ditadura militar e pagou um preço caro por isso.
E muito boas essas tuas experiências pelo continente, hein?
Abraços
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nunca me posicionei como “latino americana”…no maximo “sul americana”, o que soa mais estreito…brasileira, so.
pq ? sei la…talvez por distancia geografica
“latino americano” pra mim ainda tem aquela conotaçao pejorativa que se usa nos estados unidos…
na europa, durante os 80, rolavam milhares de estudantes, opositores, intelectuais “latino americanos”, uns carinhas lindos de bigode e cabelao tipo o che,argentinos, ou indios peruanos, bolivianos, tudo refugiado politico, fugindo das ditaduras militares, ex- torturados, romantico pra caramba !
nunca estreitei relaçoes…
nada, quando leio essa sua frase
“Para mim, ser latino-americano é, além de uma constatação cultural, uma posição política clara e indeclinável.”
me sinto absolutement alheia !
puxa, perdi algo, agora tenho certeza ! :-((
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Em parte creio que perdeu sim, c*, mas por outro lado você tem uma trajetória riquíssima por essas bandas onde se instalou anos atrás, o que te permite ver algumas coisas do lado de cá que só uma certa distância consegue proporcionar. E o melhor disso é poder compartilhar essas percepções com os amigos, não é? 😉
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Caro Ricardo,
quanto tempo, etc. (não se alongar nisso, pois o post merece comentário mais importante que os salamaleques de estilo).
Das observações do cara que você conhece, a que mais reteve minha atenção foi a do interesse genuíno que os brasileiros vêm tendo ultimamente pelo que se passa nos demais países da América Latina. Eu experimentei o mesmo, desde que me casei com uma venezuelana. No início – na pré-história, quando ainda éramos apenas bons amigos -, ela tentou por mais de uma vez me mostrar a música “latina”, e demorei um certo tempo a me interessar de verdade, para sua grande tristeza. Acho que da minha parte foi um pouco de imperialismo, sim, afinal, a música brasileira (que é uma das paixões da minha esposa, mas no caso dela, não excludente) é de uma riqueza ímpar, e o resto era o resto. Porém (ah, porém), acabei por dar meu braço a torcer.
Há muita coisa maravilhosa de se escutar vinda dos vizinhos, e em todos os registros possíveis: da música cubana, tão rica quanto a brasileira, e com o agravante de ser um país minúsculo e em condições econômicas que não preciso comentar; passando pela dos “hermanos”, o tradicional tango sim mas também canções que trazem uma modernidade tremenda (penso sobretudo num uruguaio que adoro, Jorge Drexler); indo à sua antiga terra com Chavela Vargas e Cia. Ltda; o ritmo frenético dos Latinos dos USA (Fania All Stars e a constelação de músicos que orbitam ao redor); chegando até à música clássica, com o impressionante “Sistema” venezuelano e seu expoente da moda, Gustavo Dudamel.
E o melhor (para mim) foi que a descoberta do novo mundo musical me abriu os horizontes para outros. Para não me alongar demasiadamente, te deixo uma dica, se você não a conhece ainda: Concha Buika, uma cantora negra espanhola (o negra aqui tem mais importância que o espanhola, porque ela tem toda uma palheta vocal impensável em uma cantora espanhola “de souche”). É uma gigante em ebulição. O que existe de mais próximo a Ella Fitzgerald, com a vantagem de ser jovem ainda e ter um leque infinitamente mais largo que o d’Ella.
Ou seja, se é pra ter globalização, que seja feita também com os vizinhos, e que nos traga coisas boas.
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Mirandão, bom te ver por aqui outra vez, mais ainda com um comentário desse porte. Legal essa tua experiência com a música latina, seduzido (ou seria domado?) comme il faut por uma mulher… 😉
E que eu saiba, o cara que eu conheço sabe bem do Drexler, mas não sabe nem de Fania All Stars, nem de Gustavo Dudamel e muito menos da Concha Buika. Mas ele vai ler isto daqui e, como eu, vai procurar o mais depressa possível por todos eles!
Grande abraço
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