Falando com Eiko Matsuda, sem ela me ouvir

Rio de Janeiro, 25 de novembro de 2007

Eiko Matsuda

Estimada senhora Matsuda,

Ou, quem sabe, senhorita Matsuda? Ignorar como devo tratá-la força-me a pedir-lhe desculpas — as primeiras desta carta —, e se eu seguir nesta toada não farei outra coisa. Sendo assim, quero dizer logo que tomarei certas liberdades, na expectativa de um grande perdão final de sua parte — ou talvez sua indignação e/ou desprezo, se assim julgar adequado —, sendo a minha primeira ousadia passar a tratá-la por “você”, daqui em diante.

Provavelmente não entenderá o que digo, pois suspeito que não domine o português — se bem que li trechos de uma entrevista sua em Roma, onde menciona que tem um apartamento em Paris, e como provavelmente domina o francês, é quase certo que compreenderá algo do que vai ler por aqui.

Bom, já vi que estou enrolando, melhor vou direto ao que me levou a escrever-lhe. É que tempos atrás adquiri o DVD do seu filme mais famoso — e onde a vi pela primeira e única vez —, “O Império dos Sentidos“. Quero lhe contar que ainda não tive coragem de rever, ou melhor, não encontrei o momento adequado de tornar a assistir esse que foi um marco do cinema dos anos setenta, e que tanta polêmica causou, sobretudo pelas cenas de sexo explícito. A naturalidade de sua atuação, tão marcante em minha memória, e a ancestral relação entre Eros e Thanatos, tão bem encarnada na sua personagem, me impedem de vê-lo de novo num momento qualquer, como se fosse um filminho descartável ou um pornô barato — gênero que pouco prazer me dá, por sinal. Pois bem, por conta dessa minha dificuldade de encontrar o momento adequado para me deixar hipnotizar novamente por Sada Abe, soberbamente interpretada por você, não pude deixar de ficar entre curioso e preocupado com a sua pessoa. Gostaria de saber: o que foi feito de de sua vida depois de filmar “O Império dos Sentidos”? Sabe, andei tentando encontrar informações sobre a sua trajetória artística, mas como não falo japonês e meu inglês é parco, as minhas “pesquisas” em francês, espanhol e português foram algo frustrantes, de pouquíssimos resultados. E a tal preocupação de que falei surgiu justamente do trecho de uma entrevista que você deu, onde o entrevistador sugeria ter havido uma certa injustiça com a sua carreira artística depois daquele filme, especialmente quando comparada à carreira do seu companheiro de tela, o senhor Tatsuya Fuji, que ao que parece “deslanchou” e atuou em diversos papéis importantes no Japão, sem que para isso precisasse tirar a roupa outra vez. Do que soube a seu respeito, parece que depois de interpretar Sada Abe só lhe ofereceram papéis em produções pornográficas, contratos para strip-tease e até propostas indecorosas, sobretudo por tratá-la como outro tipo de profissional e não como atriz… Certo é que nesses sites sobre cinema até encontrei alguns filmes em que trabalhou (o último deles em 1982), mas saber detalhes sobre a sua atuação neles é algo tão difícil que parece até que gostariam de “escondê-la”, e não de brindar-nos com algum personagem tão seminal como aquele do seu primeiro filme.

Desculpe novamente, é pretensioso — e talvez machista — de minha parte interpretar as coisas desse modo. Na tal entrevista você mesma diz que não é bem assim. Até anotei a frase: “É fácil concluir que sou uma espécie de mártir, fugida de meu próprio país, mas, acredite, não é nada disso”. Sim, acredito. E acredito também que, junto às violentas críticas, tenha ouvido muitos discursos de pessoas “compreensivas”, querendo salvá-la não sei bem de quê, algo que talvez lhe pareça um sub-texto destas minhas próprias linhas. Mas creia, passo longe do papel de “aprendiz de salvador”, e mesmo que quisesse desempenhá-lo, seria mais provável que fosse eu a lhe pedir que me salvasse…

Foram as suas palavras na entrevista e a dificuldade de saber sobre você, que me fizeram mudar de ideia; e o que pretendia ser uma “homenagem” àquele filme, tornou-se esta singela carta, dirigida a você, só a você.

Já estou prestes a terminar por hoje, não pretendo importuná-la mais — pelo menos enquanto não rever o filme, o que certamente me dará vontade de falar de novo com você. Sabe, não sei se o seu desaparecimento, no fim das contas, não teria se dado por seu próprio desejo. (Aliás, se foi isso o que aconteceu, procurarei não tornar a lhe procurar.) Mas gostaria de reiterar o que me parece uma injustiça com a sua imagem. Como disse antes, é difícil encontrar qualquer informação a seu respeito. Fotos? Só as do filme, muitas delas em sites de sexo explícito, o que só faz dessacralizar — e deserotizar! — a sua performance. Sei que sua idade nunca foi segredo, já que a menção ao ano de 1947 aparece em muitos lugares. Mas reconheço ter uma veleidade, o desejo incontido de ver seu rosto mais uma vez, sem a juventude e a maquiagem de Sada Abe. Sim, gostaria de saber como a vida a tratou nos últimos anos, e perguntar a cada uma de suas discretas rugas se valeu a pena. Ah, e se puder, acabe com a dúvida que me restou, contando para mim se é você a esposa do professor Takuya Matsuda. É que encontrei, mas (e infelizmente perdi de vista) uma foto em um álbum de viagens do professor, tendo a nítida impressão de que poderia ser você ao lado dele, com um olhar tão plácido… Como a foto desapareceu, fico me perguntando se não foi a custa de minha involuntária indiscrição, logo deste alguém que tanto lhe estima. Se assim foi, peço encarecidas desculpas, agora sim, as últimas. (O mais provável é que a culpa do sumiço da foto não tenha sido minha e o comentário anterior não passe de um desejo, não muito bem assumido, de que as nossas vidas tivessem se cruzado, mesmo que de um jeito desimportante. E se não me envergonho de todo é porque o que me moveu foi uma enorme admiração por você.)

Para terminar, se não for do seu interesse responder-me, não a censuro. A impertinência foi minha, e o seu silêncio não maculará o apreço que lhe tenho.

Com sincero afeto,

Ricardo

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6 respostas para Falando com Eiko Matsuda, sem ela me ouvir

  1. Pingback: Ricardo C.

  2. Colafina disse:

    Assisti este filme no cinema, não sei dizer quando, mas foi há muito tempo. Tanto tempo, que na época eu tinha mais cabelo, e menor volume… Foi um choque, afinal, mostrava sexo explícito sem ser pornô. Marcou bastante.

    PS.: Já reviu o filme? E ela, respondeu?

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  3. Ricardo C. disse:

    Já revi o filme, Colafina. Já esperava que ele não tivesse o mesmo impacto que antes, pois o mundo mudou muito, especialmente em sua relação com o sexo e a violência, cada vez mais explícitos banalizados — o que não é de todo ruim no caso do sexo, se entendermos que uma certa banalização o tornou menos tabu, menos proibido, mas que é péssimo em relação à violência —, mas ainda assim ele mantém boa parte de sua carga poética, além de ser atemporal em relação às paixões e o seu poder de criação e destruição.

    E infelizmente ela nunca respondeu a minha carta…

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  4. Monsores disse:

    Caro Ricardo,

    Passei pra te deixar um abraço, já que esse post eu li no passado.
    Gostaria de saber como você está. Tudo bem por aí? Já está no Rio?
    Mande notícias pro teu saudoso amigo.

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  5. Alex disse:

    It was a first erotic film shown in Russia legally. I looked it in 1992 and was shocked! Her acting was brilliant and emotional. She is really talanted actress. Originally as an actress in Shuji Terayama’s troupe. Unfortunately, she ceased her stage career very early (in 1982) and nobody knows about her further destiny.

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