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É o número de dias. Na verdade, ainda não deu cento e quarenta e nove, porque hoje é quarta e essa conta só fecha na sexta ao meio-dia. Nessa hora parto para Salvador, passo três dias num congresso de psicologia, mais um dia e meio revendo parentes e só então embarco de volta ao Rio.

Cinco meses em Aracaju. E lembro bem do dia, ou melhor, da noite em que cheguei, do instante em que comecei a juntar as minhas próprias memórias sobre estas terras. Porque, faltou dizer, até então a maioria delas era emprestada. Sei bem que a palavra correta seria “herdada”, pois grande parte das memórias que trago sobre esta terra diz respeito a pai, avós, tios e primos, quase todos nascidos e criados aqui ou em cidades próximas. Só que a palavra “herança” traz no lombo particularidades que nada tem a ver com testamentos, advogados e parentes em brigas de foice por partilha de bens. Minto, podem até ligar-se a eles todos, definindo posições das partes, modulando seus gestos e temperando os ódios hepáticos, atrabiliários, tão comuns em situações do gênero. Mas as particularidades a que me refiro são alguns detalhes não escritos, daqueles que sequer estão nas populares letras miúdas.

Sabem de uma coisa? Herança não é algo que basta a gente receber, assinar alguns papeis e pagar os impostos devidos para que seja nossa. Legalmente, esse é o caminho, mas isso é só parte do processo. É preciso tomar posse dela, fazê-la verdadeiramente sua, como se fosse necessário merecê-la. E isso, meus caros, raramente acontece, ou acontece só depois de se percorrer um caminho árduo, com eventuais provações, até que essa herança se incorpore ao seu patrimônio, de tal forma que… deixa de ser herança.

E a graça desta conversa é que, no meu caso, não estou falando de dinheiro, imóveis ou bens materiais de qualquer tipo, mas de memórias. Porque as anteriores, como disse, eram emprestadas de parentes. Memórias de elevado teor afetivo, lacrimogêneo ou hilariante, mas não propriamente minhas. Só que agora elas passaram a andar na fiel companhia de outras que, além de recentes, são exclusivas deste que vos escreve. Está bem, farei uma concessão: algumas eu de fato compartilho com vários desses mesmos parentes, tão testemunhas-participantes dessas novas experiências aracajuanas quanto eu. Mas existe uma categoria de memória que não posso dividir com nenhum dos meus consanguíneos sergipanos, e, acreditem, não por qualquer tipo de egoísmo de minha parte. É que em algo somos completamente diferentes: nunca convivi mais do que alguns dias a cada três, oito ou quinze anos com qualquer um deles. Enquanto inúmeros aniversários, batizados, casamentos, festas de fim de ano, enterros e sei lá quantos outros eventos renderam histórias e marcas comuns a todos, tão comuns que eles as têm de sobra, dessas experiências eu só tive relatos, alguns deles acompanhados de fotos desbotadas. Olhe fulano aqui, ao lado de sicrano… Lembra de beltrana?, ela tava tão chatinha naquela festa… não, chatinho era você, sicrano, que só agora tomou jeito e virou gente boa, hahaha… Todas memórias emprestadas, repito, e ainda eventualmente corrigidas por seus protagonistas a cada vez que eu arriscasse evocá-las, causando o típico desconforto das primeiras visitas em casa alheia, onde não se sabe o que dizer, onde pôr a mão, posso lhe pedir um copo d’água?, obrigado, desculpe.

Embora sejam memórias locais, têm passaporte. Viajaram, foram transmitidas oralmente e depois trazidas na bagagem do filho desse parente distante. Memórias daqui, eu disse, por isso conhecidas pelos aqui nascidos. O motivo da dúvida: como é que um estranho que não estava presente na hora em que tantos desses eventos ocorreram poderia carregá-las consigo? (Corrijo. Não na hora, mas no lugar em que ocorreram, habitando o mesmo chão dos daqui. Mas mesmo com essa retificação, o sentido da pergunta permanece: como ousa um sujeito que não é daqui contar histórias deste lugar como se suas fossem?) Ah, tudo bem, é porque ele é filho de fulano, um de nós, então tem direito ao seu quinhão.

Será?

Aliás, deixem eu abrir um dos meus costumeiros parênteses. É curioso falar num tipo de experiência que o senso comum costuma relacionar apenas a sujeitos com menos de vinte, vinte e cinco anos, pessoas digamos que “em formação”, como se depois dos quarenta ou cinquenta se alcançasse certa estabilidade identitária, onde as mudanças na noção de si-mesmo passassem a ser cosméticas, assessórias. Convém dizer logo: acreditem, isso não passa de ficção. Não sei se hoje em dia mais do que antigamente, mas arriscaria a dizer que sim. Isso porque, afinal de contas, há tantas possibilidades de mudança em cada um de nós, e grande parte por questões alheias a nossa vontade e independente da idade… Exemplos? Migrações, que andam em alta por motivos diversos, inclusive em função de guerras, fenômenos naturais, conjunturas econômicas etc.; a fragmentação e/ou o desaparecimento de diversos países dando à luz outras nações, reforçando regionalismos capazes de transformar em inimigos figadais grupos que durante gerações foram cordiais vizinhos; a globalização e o trabalho, combinação que faz com que as pessoas sejam cada vez mais nômades; mudanças tecnológicas, que também incidiram sobre o trabalho, fazendo com que profissões surjam e desapareçam numa velocidade assombrosa, forçando boa parte da humanidade a mudar no mínimo quatro, cinco ou mais vezes de profissão ao longo de suas vidas; mudanças tecnológicas que também modificaram as noções de espaço e de tempo, de proximidade e distância — e a internet é o melhor exemplo disso —, assim como transformaram os nossos corpos, a nossa sexualidade, cada vez mais passíveis de transformação via cirurgias, próteses, fármacos; a explosão de novos modelos familiares… Está bom ou querem mais? Ou seja, essa tal de identidade — palavrinha com inúmeros significados, enfoques e definições, mas que, grosso modo, diz respeito à dinâmica entre os seus polos pessoal e social —, está longe de ser uma questão tão estável como se poderia supor. Ela transita entre a diferença e a semelhança, já que olhamos para nós-mesmos, ou melhor, elaboramos conhecimentos e crenças sobre quem somos levando em consideração as semelhanças e diferenças em relação aos outros e a alguns grupos. Em outras palavras, identidade não é “…aquilo que se é, mas sim um conjunto de características que se sente ter, que se pensa ter, seja em comum com os membros de um grupo — e não de outro —, seja de forma individualmente diferenciada.”1 E com todos os exemplos que mencionei, vocês têm certeza de que isso que se sente e pensa ter, e que nos permitiria dizer “este sou eu” é algo realmente sólido, estável? Se não levam muita fé no que digo, então façam-me um favor: perguntem aos avós da Camila, minha boa amiga e vizinha aqui do OPS!. Tenho certeza de que a história deles dialoga razoavelmente bem com boa parte do que acabei de dizer. Fecha parêntese.

Mas deixem eu pôr de lado toda essa psicologia social sisuda e voltar à conversa mole, no ritmo do calor aracajuano e do balanço da rede que vejo ali na varanda, vazia, esperando por mim, essa mesma onde passei dezenas das cento e tantas últimas noites. Porque é um balanço mesmo, ora se não, um ponto bem fora da curva dos meus últimos anos, um lugar onde ganhei amigos que eu não sabia terem sido desde sempre, onde encontrei a energia que não imaginava ter idade para recobrar. E, sobretudo, onde me flagrei com sentimentos de pertença, só que bastante sui generis: primeiro, uma pertença conhecida, ao mesmo tempo ancestral, sanguínea e institucionalmente grudada em meu sobrenome; e depois de cinco meses, uma pertença conquistada, herança enfim possuída, co(e reco)nhecida, com cheiro, gosto, prazeres, desconfortos, risadas, sotaque… e que por isso mesmo deixou de ser herança.

Ah, e entre os principais ingredientes dessa pertença estão um monte de memórias novinhas, autônomas e ao mesmo tempo inaugurais. Não tão importantes como para começar um ciclo e deixá-las de herança, pois não há nelas material que qualquer pessoa (exceto eu) considere tão valioso como para ser disputado a tapa. São só um ou dois pares de singelezas que ficarão guardadas num canto e que darão o ar da graça num telefonema de feliz aniversário que não costumava acontecer, numa visita surpresa a Aracaju ou ao Rio, num abraço mais forte do que os de antigamente, rapaz, quanto tempo, como é que você está?, vamos sair para tomar um chope e relembrar daquela tua temporada sergipana?, claro que sim!, e lá precisava perguntar?!

Hoje somos diferentes, Aracaju, os meus e eu. Ela e muitos deles não sabem disso, mas eu e alguns poucos sim.

_____________________
1 SÁ, Celso Pereira de. In: DESCHAMPS, Jean-Claude & MOLINER, Pascal. A identidade em psicologia social: dos processos identitários às representações sociais. Petrópolis: Vozes, 2009, pp. 9-10.

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17 respostas para 149

  1. Pingback: Ricardo C.

  2. Luiz disse:

    E nada de desvio um pouco para o noroeste, não é seu…. ? Nem mesmo por um fim-de-semana, pra umas glaciais…
    Magoei…

    Agora vou ficar esperando um texto com a visão do Rio após a temporada em Aracaju.

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    • Ricardo C. disse:

      Magoe não, caro Luiz. A temporada foi intensa, trabalhosa e bastante espartana, por mais que alusões a redes, comidas e vida mansa pudessem sugerir o contrário. Não viajei a canto nenhum, apenas visitei duas cidades próximas de Aracaju. E agora, de volta ao Rio, tenho que pôr ordem na casa e retomar trabalhos, fazer novos contatos a partir do que conheci estando em Sergipe, enfim, nada que me permita sonhar em passar uns dias de dolce far niente numa cidade que tenho muita vontade de conhecer: a sua.

      Grande abraço!

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  3. Diego Viana disse:

    E o fim da aventura, Cabral? Nao tenha duvidas: a cidade maravilhosa estara de bracos abertos pra ti!

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    • Ricardo C. disse:

      É só o fim de um período de trabalho, Diego, e o início de outro, só que em um Rio que se renova… porque eu me renovei. O quanto, só vou saber mais adiante. Por enquanto quero é receber os abraços da Cidade Maravilhosa, enquanto ainda estão abertos para mim 🙂

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  4. c* disse:

    seu rc, sorria, vc estara na bahia !! cheio de memorias herdadas de algum lugar que nem era ai…goze muito esse momento criatura, apesar da chuva que parece nao parar, me disseram…

    beijos, boa volta ao mundo

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    • Ricardo C. disse:

      Cheguei de uma Salvador chuvosa, da qual pouco vi exceto uma pontinha do mar, muito bonito, como sempre. Agora estou num Rio ensolarado, ainda chegando e tomando pé das coisas. Acho que hoje ainda me darei um certo descanso, mas amanhã já tenho uma pá de coisas agendadas neste velho mundo renovado.

      Beijão pra você, extensível ao seu último comentário 😉

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  5. El Torero disse:

    Mais um texto para não ser consumido às pressas.
    Abraço.

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  6. Monsores disse:

    Porra, Ricardo. Que belo texto, cara!
    Poesia.

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  7. c* disse:

    rc ja esta no rj ? se perdeu na bahia ? ou nao saiu de aracaju ?

    falta de consideraçao com os leitores…exigentes…

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  8. Anrafel disse:

    Quem programou o congresso sabia o que estava a fazer. Com esse tempo em Salvador, resta pouca coisa senão concentrar-se nos trabalhos.

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  9. Vanessa disse:

    Me lembrei de Kundera (o principe dos conceitos em literatura) ao ler esse seus post…E fiz uma relação pra lá de maluca, mas que deixa bem claro o que penso sobre o tema ‘memória’

    A herança é o peso, a herança adquirida é a leveza

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  10. Eliane disse:

    Oi Ricardo, então voce já voltou para o Rio e nós não nos encontramos, tão perto e tao longe! Gostei muito do teu texto, aliás voce é mesmo escritor.
    Eu, em Recife depois de 8 anos, tenho muitos conhecidos, alguns amigos, mas continuo me sentido só, muito só. Felizmente a solidão pode nos levar a uma doce companhia, a literatura, melhor amiga desses dias quentes e/ou chuvosos daqui.
    Beijão,
    Eliane

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    • Ricardo C. disse:

      Eliane, minha querida, que bom te ver por aqui! E sim, uma pena não termos nos visto, mas como você disse, tão perto, tão longe… No máximo fui pro outro lado, a Salvador, e de lá mesmo voltei pro Rio, de onde teclo neste momento.
      Agora, já que não foi possível passar por aí, uma nova vinda sua ao Rio não seria nada mal, não? Inclusive porque a turma a encontrar é numerosa, assim essa solidão recifense vai ser muito bem aplacada, hehe!

      Beijos mil

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