Obrigado, Nastassja

Lá no O Biscoito Fino e a Massaum post do Idelber conclamando ateus a saírem do armário. (Da última vez que passei por lá a caixa já tinha 405 416 493 comentários!) A discussão está muito boa, e sua provocação inicial parece mesmo ter surtido efeito. Uma pena que muitos e bons comentaristas tenham emperrado no tom empregado pelo autor — confundindo sua ênfase com algum tipo de panfletagem atrabiliária, come escrevi por lá — e na crença de tratar-se de uma discussão estrangeira que não se aplicaria ao que ocorre no Brasil, dois aspectos que, mesmo involuntariamente, reforçam (ou melhor, confirmam) o que o Idelber chama de “falsas simetrias”. (Enquanto isso, alguns excelentes comentários — aos meus olhos, é claro — não foram tão debatidos como eu gostaria, como foi o caso dos do Catatau — nº 205, 229, 389 —, com os quais só a não menos consistente Dinha — nº 213, 361 — e o Bruno — nº 374 — estabeleceram uma boa interlocução. Uma pena, mas num debate de vozes tão diferentes algumas questões ficam mesmo pelo caminho, paciência.)

Eu não tive muito a dizer, já que o meu agnosticismo é explícito e muito falei sobre ele aqui mesmo nesta Ágora, em alguns carteletes que compõem o meu Dazibao. Só fiquei um pouco irritado com a recorrente comparação que alguns fizeram entre o agnosticismo e o PSDB, como se essa posição em relação a deus(es) não passasse de um envergonhado encimadomurismo… Ô raiva que essa rasteirização me dá!

Mas deixa pra lá, que eu quero é mesmo falar do único tipo de devoção que consigo reconhecer em mim, e mesmo assim dando voltas e mais voltas. Ele está num velho post que resolvi republicar — viram que mudei a estratégia fazendo esta enorme introdução? —, e que não imagino como poderia ser mais explícito sobre as minhas relações com a esfera divina…

Com vocês, mademoiselle Kinski.

*  *  *

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Está escrito em Êxodo 20, 4-5:

Não farás para ti ídolos, nem figura alguma do que existe em cima, nos céus, nem embaixo, na terra, nem do que existe nas águas, debaixo da terra. Não te prostrarás diante deles, nem lhes prestarás culto, pois eu sou o Senhor teu Deus, um Deus ciumento. Castigo a culpa dos pais nos filhos até à terceira e quarta geração dos que me odeiam, mas uso de misericórdia por mil gerações para com os que me amam e guardam meus mandamentos.”

Nesse mandamento (e os grifos são meus) achado no empoeirado exemplar da Bíblia que tenho em minha estante — ao lado do Tao Te Ching, do Bardo Thödol, do Bhagavad Gita e do I Ching, e bem perto do DSM4 (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais), como já disse em outra ocasião que não lembro —, fui buscar uma espécie de explicação para o fato de eu nunca me ajoelhar diante de musas, deuses, deusas ou ídolos, de não admitir nenhum, mesmo em tempos de tanta oferta. Sei que isso soa estranho para o agnóstico que sou — coisa que os meus amigos já estão calvos de saber —, mas devo admitir que seria tolo negar a influência judeo-cristã sobre o que penso, sinto e acredito. Sendo assim, encontrar, no Velho Testamento, pistas a meu respeito (e a respeito de muitos de nós), no fundo não é tão estranho quanto poderíamos supor…

Desculpe, Nastassja, aconteceu de novo. Tenho o grave defeito de dar voltas e mais voltas antes de entrar num assunto, e hoje não foi diferente. Mas te peço algum crédito, estou meio sem jeito de me dirigir a você, que, ao contrário de mim, sequer me conhece, e é pouco provável que tenha ouvido o meu nome. Pois então lá vou eu, direto ao assunto.

Se eu fosse obrigado a ter três musas, três deusas ou três ídolos, um deles seria você. E se me fosse destinado ser um personagem de algum dos seus filmes, provavelmente eu seria o Travis, de “Paris, Texas”, ou o Ivan Bibic, de “Os Amantes de Maria”. Não à toa eram maridos seus, Nastassja, e tamanhamente sofridos, cacos de gente espalhados pela tela do cinema… Esse padecimento todo, claro, vinculava-se a você, à impossibilidade, à inacessibilidade, algo que eles só compreenderam quando apreenderam a si próprios, quando juntaram os pedaços de si espalhados não só pela tela, mas pelo mundo inteiro, e lhes deram sentido (foi o que aconteceu com o Travis, não é?), ou quando por instantes você abdicou, benevolentemente, de sua divindade, tornou-se humana, permitindo que o Ivan finalmente pudesse imaginar-se ao seu lado…

Sim, Nastassja, porque você é de outra estirpe — o seu papel em “A Marca da Pantera” bem que avisou! —, e já que a relação entre homens e deuses sempre foi um risco para os primeiros, tão frágeis, não espanta que Travis e Ivan, para conseguir por fim compreender-te, pagassem caro, muito caro por isso. Esse é o destino terrível dos homens que ousam igualar-se aos deuses…

Mas Nastassja — e desculpe repetir tanto o seu nome, é que não resisto a esses dois ésses seguidos de um jota, que magicamente viram xis —, hoje é dia 10 de dezembro, quase fim de ano, e é por isso que quero ter direito a uma terceira opção, uma não tão trágica, não tão sofrida e sem saída como as de Travis e Ivan Bibic. Queria, qual Sísifo, ser o mestre da malícia e dos truques, enganar os deuses e adiar o castigo, e nesse intervalo, gozar da maior delícia que um homem ou uma mulher possa ter: você. (Só pela ousadia — ou grosseria — de dizer isso, já mereço o pior dos tormentos…) Como comecei a dizer, Nastassja, se me fosse dado o direito de escolher um personagem, gostaria de ser Roué Giulio Marengo, interpretado por Marcello Mastroianni, de quem você foi amante em “Tentação Proibida” (e, ao que consta, também fora da tela), e tê-la em minhas mãos, como nesse fotograma de vocês dois que capturei e pus aqui embaixo. E esgotando todo o estoque de astúcia de Sísifo, acabar condenado, sim, só não a rolar com as mãos uma pedra até o cume de uma montanha, mas a ficar, como Marcello, com as mãos e a boca em tuas ancas, te ouvindo rir gostosamente, por toda a eternidade…

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20 respostas para Obrigado, Nastassja

  1. Dinha disse:

    É, Ricardo, também acho que o comentário do Catatau merece mais atenção, principalmente porque toca bastante na principal questão que o Idelber levantou: o debate na esfera pública. Quem sabe se o Idelber respondesse…Eu tentei responder de acordo com o que eu já tinha falado antes, no primeiro comentário, mas não fui além disso, apesar de saber que a provocação dele – principalmente depois de explicada – foi bem pertinente.

    Adorei o desfecho do teu texto, hehe.

    Abraços.

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    • Ricardo C. disse:

      Dinha, reitero que as tuas primeiras considerações dirigidas ao Catatau foram muito importantes, pois permitiram que mais adiante ele replicasse de maneira muito mais clara. Pena que a provocação do Idelber acabe chamando tantos comentaristas desatentos, mas foi o preço a pagar pela via que ele escolheu. Isso para mim, é claro, pois preferiria que questões como as que vc e o Catatau discutiram tivessem mais espaço no debate.

      E que bom que se divertiu com o desfecho do post! 🙂

      Abraços de volta

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  2. Lelec disse:

    Oi Ricardo,

    Penintecio-me pela demora em lhe retribuir as simpáticas visitas à Terceira Margem e pela bondade de relacionar meu bloguinho na sua lista aí ao lado.

    Admiro quem já tenha “saído do armário” na questão religiosa. Ainda não consegui expor sinceramente minha falta de fé à minha família. Ainda tenho muito o que percorrer para chegar a essa comunicação.

    Mas uma coisa eles sabem: minha devoção a Nastassjia Kisnki. “Paris, Texas” é um dos filmes de minha vida.

    Abraço

    Lelec

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    • Ricardo C. disse:

      Deixe de besteira, Lelec, sei pelo Diego que a vida profissional te cobra bastante, tanto que nem atualiza o seu próprio blog com a frequência que visitantes habituais como eu gostariam. (Ele está na lista porque é leitura obrigatória, ora!) 🙂

      Ser claramente agnóstico não foi difícil de assumir junto aos meus pais. Aliás não lembro de minha mãe — que não se diz religiosa —, meu pai — um discreto ateu — e eu termos falado algum dia sobre religião, nem de ir a qualquer missa, culto ou o que quer que o valha que não fosse ligado a casamentos, falecimentos ou aniversários de alguém próximo e minimamente religioso. Resumindo, em relação ao tema nunca tive problemas na esfera pública. Sorte minha, não?

      Eu tive sim o meu momento de cristianismo, lá pelos meus 14 anos, uma aproximação desvinculada da minha família e ligada sobretudo a amigos que tinham um pé na religião e outro nos movimentos sociais e políticos de esquerda. Mas esse período durou só um par de anos. (Restaram as amizades e a esquerda…)

      Quanto a Nastassja, boa parte da minha geração (anos 60) segue devota, não importando o gênero nem a orientação sexual. (Já o sexo importa, e muito!)

      Abraço, e sinta-se sempre em casa

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  3. Catatau disse:

    Olá Ricardo!

    Obrigado pela menção a tal parte do debate lá no Idelber. Mas aí que está, não há como esses argumentos fla-fluzescos, de “população”, não terem movimentos de população. Mesmo que a questão exija tudo, menos isso.

    Quanto ao desfecho do teu post, isso não vale. Ele fica incontestável!

    abração,

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    • Ricardo C. disse:

      Mas ainda bem que você é “brasileiro e não desiste nunca”, hehe! Falando sério, reconheço que houve bons comentários por lá, mas teria gostado bem mais se questões como as que você apontou fossem melhor discutidas e aproveitadas. Até o próprio Idelber debateu pouco, estou certo de que ele teria muito mais a dizer caso o tema não fosse tão polêmico para muitos, despertando tantas paixões. Mas foi o gancho que ele escolheu, e que de certa forma acendeu um bate-boca que raramente é levado adiante na esfera pública, embora tenha muitos desdobramentos nessa mesma esfera pública que devessem ser amplamente discutidos e não relegados a um falso foro íntimo, impedindo qualquer discussão, enquanto a força dos grupos religiosos segue interferindo no dia a dia da nação.

      Quanto a Nastassja, quem não gosta dela é ruim da cabeça ou doente do pé (e do resto do corpo). Reconheço que o golpe foi baixo, bem ali perto de onde o Marcello Mastroiani concentra toda a sua atenção.

      😛

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  4. Luiz disse:

    Grande Natasha…

    Ricardo, por coincidência, estes dias citei Paris, Texas em uma brincadeira bem ali…

    E tem algo pra você, acolá.

    Abração.

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  5. Anrafel disse:

    Fui irreversivelmente fulminado pela Nastassia Kinski logo em “Tess”. Entrava no cinema extasiado para ver “Cat People”, “O Fundo do Coração”, “Paris, Texas”, “Revolution” …

    Nastassia é (continua) única. Produz fortes emoções e pensamentos bestas, tipo esse:

    “Meu Deus, como é que uma mulher dessas é filha daquele maluco dos western-spaghetti que eu gostava de ver no interior da Bahia?”

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    • Ricardo C. disse:

      Em Tess ela estava envolta por aquele olhar do Polanski, um olhar algo incestuoso, avalio eu. E não faço julgamento moral, apenas defino haver nele um olhar de pai que deseja filha mas respeita o tabu. (Na vida real dizem que o Klaus Kinski, pai da moça, teria tido relações com a filha. Não sei se é verdade ou não, mas é sabido que eles não se falavam.)

      Quanto aos teus pensamentos bestas, eu devo ter uma coleção deles, guardada nalgum canto do inconsciente…

      😉

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  6. Anrafel disse:

    E parece que Polanski tem coisas assim no currículo (ou folha-corrida?). Não no cinematográfico (que é ótimo).

    Corre mesmo esse papo com o Klaus. Cinematograficamente, Herzog o transformou num gigante. Deve ter pensado: “um sujeito desses não pode fazer papéis ‘normais’.

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  7. Pingback: Ricardo C.

  8. Grijó disse:

    Isso é mais que uma carta, Ricardo. É uma ode, um elogio absoluto cujo tema é mais que justo.

    Grande.
    Parabéns.

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    • Ricardo C. disse:

      Uma ode meio barroca, Grijó, reconheço, mas ao mesmo tempo totalmente sincera, o que espero ajude a redimir seus excessos.
      E afinal de contas, são as nossas cinemusas, a gente precisa pôr nem que seja um pouco desse afeto todo pra fora, não é? 😉

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