“Ninguém se separa. As pessoas se abandonam.”

Já faz algumas semanas que assisti ao filme O Passado, do Héctor Babenco, e me lembrei sobre ter pensado em algo quando vi o filme, umas poucas impressões que pretendi deixar por aqui também. Mas os dias foram se sucedendo, o trabalho sufocando, e, com o perdão do trocadilho, passou. Então aproveito e resgato agora algumas das tais impressões, por conta de um voluntário e providencial intervalo em minhas obrigações laborais.

E o que pensei? Bom, para os que não viram o filme, é melhor que comecem por alguma sinopse. Deixe-me ver… pronto, achei uma razoável. Não diz tudo sobre o filme, mas é suficiente para se falar sobre ele. Ah, não recomendo que leiam resenhas sobre o livro do Alan Pauls, cuja adaptação deu neste filme do Babenco. É que filme e livro parecem ser mesmo bem diferentes, como sempre acontece, o que pode atrapalhar a relação com o próprio filme, como também acontece sempre. (Pretendo ler esse livro hora dessas.) E por último, não tem jeito, duvido conseguir falar sobre o que pretendo sem acabar revelando algo sobre a própria história. Se quiserem ver o filme, sabem que correm riscos a partir daqui. Mas sigamos.

Pois o filme começa pela separação de Rímini e Sofía, casados há 12 anos, e que se conheceram ainda na infância. Trata-se de um desses freqüentes “primeiros amores”, e Rímini, quando fala dele para a sua segunda mulher — a enciumada, insegura e infantil-porém-voluptuosa Vera —, diz ter sido um daqueles que terminaram bem depois do amor ter acabado — ou uma variação sobre o tema, vá lá.

[Bom, vejo que até aqui falei mais sobre a história do filme, ao contrário do que pretendia. Falha minha, já que pensava refletir sobre um homem e sua relação com algumas das tantas mulheres que aparecem na tela. Prossigo.]

Ainda na saída da sessão, ouvi (e discuti) sobre supostos papéis masculinos e femininos, sobre a neurose centrar-se sobretudo nas mulheres do filme, e sobre o Rímini ser apenas mais um típico e imaturo homem, daqueles que andam sendo objeto freqüente do discurso feminino, homens que precisam sempre de uma mulher que decida por eles, que ponha em palavras o que eles sentem, que faça o clássico “trabalho de bastidores”, tão comum ao universo feminino em todos os tempos. Pode ser isso, admito; mas não apenas isso. Não dá para deixar de notar que em algumas de suas histórias amorosas Rímini “funciona” melhor do que em outras, e que isso se deve, obviamente, ao par, mais do que a ele apenas. Nesse sentido, as neuroses, por mais que digam respeito às repetições — neurose é repetição —, também precisam de terreno fértil e de bons interlocutores, o que acontece de forma diferenciada ao longo das histórias amorosas pelas quais o protagonista passa. Algo, porém, devo reconhecer em relação ao Rímini, e que costuma aparecer com freqüência no universo masculino: ele funciona como um felino. (Nada a ver com o fato do ator principal ser o Gael García Bernal, folgo em dizer.) Felino, sim, mas não de um desses gatos de rua independentes, “donos de seus narizes”, e sim de gatos domésticos, que mais do que “amar” os seus donos, “amam” o “esquema familiar”, o sistema em que vivem — uma espécie de “casa, comida, roupa lavada e afetos familiares cotidianos”, todos bem juntinhos. Claro que os gatos ficam mexidos quando mudam de “interlocutores”, mas assim que o “sistema” se estabiliza, logo se mostram satisfeitos, readaptados… E no caso de Rímini, é evidente que ele sofre com as suas separações, seria tolo pensar o contrário. Mas reparem, é só quando em uma dessas separações a sua perda se mostra muito maior do que apenas a perda do amor de sua companheira, que todo o seu mundo sucumbe!

Por outro lado, Sofía, a primeira mulher de Rímini, é vista por muitos como uma louca, a louca em potencial que haveria em qualquer mulher. Sinto discordar do “diagnóstico”, por mais que a identificação seja clara para muita gente. O que vejo é que ela é refém de sua história, é refém desse olhar para trás e da impossibilidade de encontrar sentido no presente, exceto se for num passado presentificado. Ela parece entender-se como alguém para o outro — e Rímini encarna esse outro —, e é capaz de algum desatino em nome disso. Mas rotulá-la como louca é simplificá-la, caricaturá-la, por mais que a adaptação do Babenco caia um pouco nessa armadilha. Reconheço que a neurose emburrece, que empobrece as pessoas. Disso ela pode certamente ser tachada. Mas ela e todos nós…

Vera, Carmen (outras duas mulheres com quem Rímini se casa)? São importantes, cada uma do seu jeito. Mas não de forma isolada, desconectada da história, de Rímini e mesmo de Sofía. Se a história tivesse tomado outros rumos, se os personagens tivessem se conhecido numa ordem diferente, as coisas certamente teriam sido bem diferentes. Sempre são, por mais que queiramos aprisioná-las.

Haveria muito o que dizer sobre esse mote de O Passado, a memória. Mas desse aspecto quase todos os críticos, resenhistas e especialistas em cinema e literatura, psicologia e psicanálise, além dos blogueiros (bissextos como eu, ou não) já andam a falar. Há também algo que me perguntaram: se gostei ou não do filme. Gostei, apesar dos defeitos. Me fez pensar mais na história e nos personagens do que nas falhas. Costumo entender isso como um mérito, diga-se de passagem.

Uma observação a fazer, que considero pertinente: não dá mesmo pra ter o melhor dos dois mundos, isto é, agradar aos que viram e aos que não viram. É mesmo difícil falar sobre o filme sem estragar a surpresa para os que não o viram, e ao mesmo tempo discutir algo… que veio do próprio filme! Mas acredito que pelo menos uma coisa eu tenha defendido nestas linhas: a idéia de que, por mais que as neuroses façam com que a gente tenda a funcionar de forma clichê, previsível e repetida, elas não “garantem” o “sucesso” dessa repetição, simplesmente porque novos encontros com novas pessoas geram outras possibilidades. Rímini é “o cara” do filme — e as aspas não são propriamente um elogio —, e ele se relaciona com 3 mulheres ao longo do tempo — há uma 4a., mas não é tão importante assim no filme. Citei as 3, pela ordem: Sofía (de quem se separa logo de cara), Vera (modelo, 22 anos, gostosa porém mega-insegura e ciumenta até da própria sombra) e Carmen (dela melhor não falo, se vcs forem ver o filme). Se as nossas neuras sempre fossem bem sucedidas nas repetições das histórias, o funcionamento do Rímini teria tido os mesmos resultados em todas as 3 relações, coisa que não aconteceu. A neura é a mesma, mas o terreno (as relações) em que ela se instala faz com que ela aja de forma diferente, com resultados diferentes. Isso é bom e é ruim. Bom porque não significa apenas fracasso, aspecto mais do que comum em se tratando de neuroses. E ruim justo quando as coisas funcionam aparentemente bem, e aí a gente não percebe mais a neura, deixando de crescer e amadurecer nessas áreas em que ela se instalou, e prejudicando outras áreas que sequer imaginamos vinculadas a ela…

Esse post foi publicado em (re)flexões, amor (e/ou desamor), cinema e marcado , , , . Guardar link permanente.

9 respostas para “Ninguém se separa. As pessoas se abandonam.”

  1. confetti disse:

    alo seu ricardo ! quantos blogs vc tem ? entrei por um link inhabitual e cai num lugar meio estranho, decô diferente mas quase os mesmos post ! quelle verve hein ! ando so lendo aqui, sem tempo pra comentar, mas tou com saudades do seu riso !beijos

    Curtir

  2. Ricardo C. disse:

    Só mais um, mais pessoal, basicamente para amigos — muito do conteúdo é fechado apenas para contatos. Tiro algo do que tenho lá e ponho aqui, dando sobretudo uma atualizada nos dados do texto, enquanto sigo trabalhando feito um burro de carga… Aos poucos este daqui terá conteúdo exclusivo.Tb com saudades dos seus bom-dia!Beijão

    Curtir

  3. Nat disse:

    As pessoas se abandonam… Tão verdadeiro isso. Elas abandonam aquilo que não querem mais nelas e descobrem no outro, que na verdade são as projeções que fazem de si mesmo, querendo que o outro seja um espelho ideal aos seus anseios mais manipuladores…

    Curtir

  4. Ricardo C. disse:

    Nat, isso acontece não só no fim, mas tb no início dos relacionamentos. Afinal de contas, ninguém se apaixona pelo outro, até porque não sabe ainda quem é o outro, tem apenas registros precários sobre ele e um monte de projeções de si mesmo sobre esse mesmo outro…

    Curtir

  5. pingwyn disse:

    Ricardo,Admiro sua capacidade de ver o que esta por tras das atitudes, acoes e reacoes…mas uma pergunta fica teimando em querer sua resposta..alguma vez voce vive sem tentar entender ou dar motivos..somente aceita o que acontece e vive o momento?

    Curtir

  6. Ricardo C. disse:

    Muitas vezes, Gwyn, na realidade, a maioria das vezes. Talvez a quantidade e a velocidade dessas “conversas” que tenho posto por aqui dê a impressão que não faço outra coisa que não seja analisar, mas é uma falsa impressão. Muito disso eu já tinha escrito, boa parte apenas trouxe para cá, atualizando uma ou outra coisa.Aliás, gosto do refrão de uma música do cubano Silvio Rodriguez (ou será do Pablo Milanés?) que diz assim:Si quieres ser felizcomo me dices,no analices,no analices…

    Curtir

  7. pingwyn disse:

    Ricardo…Desculpas..esse era o meu medo …fazer a pergunta e vc responde-la.SE voce e assim e e sua profissao tambem, why not??Minha curiosidade ( e eu sou MUITO curiosa..) era so saber se voce nao so gosta do refrao da musica do Silvio Rodriguez, mas vive-o tambem.um beijo grande

    Curtir

  8. Ricardo C. disse:

    E a resposta é sim, Gwyn, definitivamente sim! E é isso o que me ajuda a manter a minha sanidade mental. Imagine que porre (para os outros e para mim mesmo) se não parasse de analisar cada gesto, cada olhar, cada sorriso ou lágrima? Insuportável!!! Aliás, não tenho o menor saco pra gente assim!!!!Beijos

    Curtir

  9. pingwyn disse:

    ufff!! estava ficando preocupada com voce, Ricardo..E muito bom, de vez em quando, viver idiotamente (pordoe se estou sendo politicamente incorreta)…rsrsrs

    Curtir

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.