Janela

“Você está triste…”, e não era uma pergunta. “Está tudo bem?”, agora sim. “Está tudo bem sim”, em resposta à voz do apartamento em frente, da janela em frente, praquela dona, praquela moça nem tão moça assim, que bebia o que parecia whisky, pelo menos amarelo era, pelo menos gelo tinha.

(Ela estava bem, diziam-lhe os músculos de suas pernas, que não tremiam mais. Ela estava bem, dizia a fumaça do “cigarro pós-coito”, em termos médicos.)

“Isso foi uma cantada”, ele diz, sobrancelhas arqueadas, esparramado na poltrona, longe do cigarro, longe da janela, longe do olhar da vizinha bebendo à saúde da amante, longe do quarto onde momentos antes morrera um pouco dentro dela, da amante, da vizinha não. “Foi nada, para com isso. E ela já saiu da janela”, sorriso largo, desmentindo a tal tristeza, levando-se em conta as duas horas anteriores, entregue, abusada, ardida, e massageando os pulsos há pouco atados àquelas meias futebol das quartas-feiras. “Então abre um pouco as pernas, vai, deixe eu te ver, só mais uma vez…”, e ela fazia o oposto, que atiçá-lo era do que mais gostava. “Não, tenho que ir embora, não foi o que a gente combinou, e você disse que hoje é dia da sua mulher chegar mais cedo”, voz séria, o cigarro apagado, “o que você faz que quando fuma nunca fica cheiro?”, e os joelhos dela ligeiramente afastados, sugerindo mais do que mostrando, a sacana.

Da languidez à taquicardia, um pulo. Um não, dois, e os dois de pé, apavorados (ele mais), o inesperado e estridente toque da campainha, “vá pro banheiro, rápido!”, no mais sibilante sussurro que já pronunciara, ele que nunca conseguira adquirir o típico chiado carioca que põe xis em todos os plurais. E o belo par de pernas caminhou para o cadafalso, anestesiado, sem rumo, prevendo uma morte indigna caso continuasse trajando a blusa dele, apenas, o resto em pêlo, descalça, des-calcinha, só para não perder a piada que não se atreveu a contar-lhe. (Não conseguiria. Não sem escrever num papel, matando-lhe a graça por falta de timing. Pareciam-se nisso.)

Imagine agora um daqueles carrinhos bate-bate, dos velhos parques de diversões. Imaginou? Era ele, mudando de direção a cada “ai-meu-Deus-e-agora” que dizia, esbofeteando a própria testa com a mão direita. E o pouco siso adquirido, conseguindo driblar-lhe a estupidez, encaminhou-o ao armário; uma camisa e uma calça, pelo menos, quem sabe não encontra num dos bolsos a frase certa. Só que o segundo toque de campainha, o que não houve, piorou as coisas, fazendo-o pensar, tentar pensar, re-tentar repensar em pensar, e fervendo-lhe os miolos. Apenas os trajes, caindo-lhe bem, renovaram suas esperanças num milagre, enquanto girava a chave e repetia em voz baixa “Gê, Gê, Gê”, com medo de trair-se e soltar um “Jô”, “maldita parecença, nome da amante e nome da mulher” — o da vizinha não, não que soubesse.

E o que dizer dela, da “Jô”, sentada sobre o tampo da privada, a calcinha numa das mãos? Ora, vestir para que, qual a diferença diante do óbvio, dos cabelos desgrenhados, dos pés descalços e da revolução dos lençóis daquela cama atrás da porta do banheiro, uma das meias do futebol das quartas-feiras ainda amarrada à cabeceira, dessa conjuntura do demo, que anjo da guarda algum conseguiria explicar? A Jô, que deixava o amante exibir a sua verve, exercitar a sua lábia, passando-se por despreparada, mas certa de que lhe daria uma bem dada surra de argumentos caso ele se metesse à besta? Restava-lhe esperar, resignada, pelo sinal de fumaça, pela fala não mais sibilante, pela deixa para entrar em cena, sem saber se no papel de protagonista ou de coadjuvante, mas certa de ser a vilã.

De volta a ele, à porta, ao giro da chave, às cortinas se abrindo. E da taquicardia à parada cardiorrespiratória outro pulo, por sorte figurado no sentido. “O-oi”, a primeira fala, “o-oi” a primeira resposta. “Desculpe, não sabia que…”, faltando frases certas na calça sem bolsos da dona, da moça nem tão moça assim, que não era a Gê, que bebia o que decerto era whisky, com gelo nos dois copos — isso mesmo, dois. “Na-não, queísso… quer entrar?”, tirou a fala do bolso esquerdo, com um quê de alívio estampando-lhe um sorriso amarelo-whisky-combinando, “não não, é que… desculpe, achei que ela tava sozinha, não quero incomodar”, devolveu a dona nem tão moça, dando três desconcertados passos para trás, o sorriso dele em nada ajudando, a Jô contrita no banheiro e a Gê longe dali, seu anjo da guarda a todo vapor, e a dona menos moça já no meio corredor, esvaindo-se sem lençóis, sem meias do futebol das quartas-feiras, sem Jô, o objeto desejo des-calcinhado, e sumindo na penumbra, dois copos de whisky na mão, e o sorriso amarelo-whisky-combinando dele começando a desfazer-se, treze novos fios brancos na cabeleira surgidos no percurso da porta do apartamento à porta do banheiro, rindo (de nervoso) ao descrever a cena à outra, buscando a cumplicidade perdida no toque da campainha, naquele “vai pro banheiro, rápido!” que reafirmara à outra o seu lugar.

Dois dias depois, vazia a garrafa no corredor, junto à porta da lixeira. Uma semana depois, vazio o apartamento vizinho. Três meses depois, a Gê, longe dali, nunca mais voltaria, E Jô no seu lugar de primeira.

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10 respostas para Janela

  1. Ricardo C. disse:

    Desculpem, mas quando colei esse texto aqui antes, ele ficou todo truncado.Agora, cá entre nós, acho que a temática deste texto vai ser do agrado do Pax, não é?

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  2. Nat disse:

    Meu bem, eu entrei aqui pra dizer a mesma coisa, impressionante ;- )Não sei porque isso me veio na cabeça agora, mas lendo a sua primeira frase me lembrei de como as pessoas reagem quando respondo Não a um tudo bem…A banalização das palavras se confunde com a banalização dos sentimentos que elas querem exprimir… Uma lástima.

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  3. Ricardo C. disse:

    Nat, sobre a primeira parte, estamos mesmo afinados! ;-)E em relação ‘a 2a., concordo com você. Gasta-se tanta saliva para dizer frases automáticas, são tantas as pseudo-conversas…

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  4. Pax disse:

    Quem Dirce? A Dirce Dirce.

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  5. Ricardo C. disse:

    A Dirce é a Jô, a Gê ou NDaL*?(*Nenhuma das Respostas ao Lado)

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  6. Pax disse:

    Dirce é a Dirce. Mora aqui do lado, o marido adora jogar futebol e ficar tomando cerveja com os amigos até tarde da noite, comparece pouco, faz pouco elogio pra ela, adora ficar vendo televisão até dormir. Abre um espaço danado de bom, se é que dá pra entender.E que espaço !

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  7. Ricardo C. disse:

    Deu vontade de conhecer a Dirce. Vontade profissional, diga-se de passagem…

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  8. Nat disse:

    Eu tava aqui pensando… Homem que é traidor profissional tem é que arranjar o mesmo apelido pra todas as amantes…Eu tive um ex que trocava os nomes na hora do sexo. Tudo bem que quando ele me chamou pelo nome da mãe dele, não teve jeito. Brochei na hora. Depois que já estávamos separados, rolou maior barraco com a atual dele, que veio me procurar, pq ele tinha dito Natalia na hora do vamos ver… Eu ri, claro. E tive que explicar pra ela. Relaxa, amiga! Aproveita pra achar que é outra pessoa e manda ver no sexo.Faz um bem danado!

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  9. Ricardo C. disse:

    Os psicanalistas — não é o meu caso — chamariam isso de lapsus linguae. Cá entre nós, na maioria das vezes é mesmo parte da traição o frisson de poder ser flagrado. Uma rata dessa, que muitas vezes tá mesmo ligada a um sentimento de culpa, não é para dizer que “tá tudo bem”, não é? É parecido a ir no enterro do parente canalha de alguém e soltar um “meus parabéns!” em vez de “meus pêsames”…

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  10. Nat disse:

    Ricardo, querido, o que era mais engraçado nesse meu ex, é pq ele não me traía, ou seja, os nomes que ele dizia na hora eram de ex deles, ou de paixões reprimidas ou antigas, ou de primas e tias, e até da mãe, como já disse. Uma vez eu o questionei, e ele nem se lembrava do que tinha falado. Acho que ele entra num transe na hora do sexo, e fala o primeiro nome que vem na cabeça dele. No começo era estranho, mas depois eu me acostumei. O pior é que tivemos um revival depois de muito tempo, mais de seis anos, e ele na hora H me chamou pelo nome dessa ex dele, a que tinha armado um barraco comigo.Me senti vingada ;- )Ah, obrigada pelo comentário lá no blog. Eu estava mesmo melancólica neste dia.

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