— Senhorita, eu gostaria de falar com o Venerável.
— O Venerável está meditando, recarregando-se de prâna, para depois doá-la aos fieis. Mas… não foi a senhora que esteve com ele na semana retrasada, pedindo-lhe que a fizesse sair das trevas e voltar a enxergar de novo?
— Foi sim.
— Então a senhora veio agradecer o milagre? Não precisava, o Venerável não carece de agradecimentos, ele sabe muito bem que é apenas um veículo para auxiliar os outros a liberar-se do Samsara e…
— Eu quero parar de enxergar.
— Ahn?!?!
— Vou repetir de outro jeito: quero voltar a ser cega!!
— Mas por quê??
— Minha filha, nem vou cair nessa bestagem de que o mundo tem muita coisa feia, que isso eu sempre soube. Acontece que quando o Venerável me fez enxergar de novo, jogou fora todas as neuras que eu construí nos últimos trinta anos. Um trabalhão danado, foi tudo pro lixo! Você não sabe a dificuldade que não foi fazer a minha irmã mais velha cuidar de mim nesses anos todos, e ainda por cima que ela se sentisse culpada por eu ser a cega e não ela. Sem falar na pensão de papai, que ficou toda pra mim, e da baixela de prata da bisa, que, de tanto dó, aconteceu de vovó ter que me dar, mesmo tendo prometido que ia ser pro primeiro neto que casasse, que foi o meu irmão… Pois fazfavor, diga ao Venerável que eu vim pegar de volta a cegueira, as minhas neuras e a culpa da minha irmã, e que baixela de prata pode deixar pra lá, que essa eu já dei por perdida.
Bem dizia Clarice Lispector….”Nao pense que a pessoa tem tanta forca assim a ponto de levar qualquer especie de vida e continuar a mesma. Ate cortar os proprios defeitos pode ser perigoso – nunca se sabe qual e o defeito que sustenta nosso edificio inteiro…”
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Fico pensando sempre nessa tendência a medicalizar tudo, a buscar uma pretensa felicidade como modelo, padrão, que acaba virando uma camisa de força e um convite a sentir-nos mal por estarmos longe de chegar nesse patamar…
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preguica talvez?? Mais facil seguir um modelo, um padrao do que descobrir o que nos faz ser/estar feliz. Melhor nos restringir, nos limitar do que termos a liberdade…liberdade pode ser perigosa demais para quem esta acostumado a camisas de forca.
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Liberdade implica em abertura ao novo, ao desconhecido, à falta de garantias, ao risco… Nem sempre as pessoas estão dispostas a isso, não é?
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E o que pode ser mais gostoso do que o desafio do desconhecido, da falta de garantias, do incerto, do risco.Essa liberdade e maravilhosa….Acredito que na hora que perdemos a coragem de encarar esses desafios…morremos.Afinal, nao e isso o que chamamos de Vida??
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